Socorro Guterres
O tempo com os avós, embora às vezes curto, é incomensurável. Minha avó materna morava em um grande casarão de muitos cômodos. Tanto que, após o tempo de minha avó, tornou- se escola.
Eu devia ter uns seis anos, as lembranças chegam esparsas, mas o casarão de vovó se ergue imponente na memória e, desse modo, adentro uma das tantas janelas debruçadas para a rua e ainda não entendo o porquê de muitas vezes cerradas, talvez para preservar o frescor nos ambientes internos ou para resguardar as graças guardadas.
Ficava localizado na Rua Santo Antônio da minha querida São Luís, próximo à Praça Antônio Lobo, cujo nome homenageia Antônio Francisco Leal Lobo, renomado escritor, sendo um dos fundadores da Academia Maranhense de Letras. Minha escola do Jardim de Infância, localizada nas proximidades, também homenageava Antônio Lobo e assim se intitulava. Já havia, portanto, certa aura literária a guiar meus passos. Perto da minha escolinha, o casarão de vovó.
Eu esperava ansiosa pelo final da aula, pois, costumeiramente, antes de seguir para casa, mamãe me levava ao grande sobrado. Já na entrada acolhia-me o cheiro da carne assada no forno. Eu, incrivelmente criança vegetariana por vontade própria, me satisfazia com a farinha de mandioca deliciosamente engraxada no molho do fundo da panela de vovó.
A rotina se estabelecia entre minha casa, as brincadeiras na pracinha, o Jardim de Infância, o casarão destaque da rua e vovó sempre a espera da primeira neta. Os móveis robustos, o grande telefone preto, a cozinha aquecida no calor do aroma apetitoso. De repente, a notícia inacreditável: vovó ia morar no Rio de Janeiro!
E o meu pequeno mundo? Eu me perguntava como ficaria sem a figura forte, de cabelos em coque, grossos óculos, cordão de ouro adornando os vestidos sisudos, a me dizer firmemente "Bom dia, Socorrinho ". Foram lágrimas contidas, já que não queria deixar vovó triste com a minha fraqueza, nesse desamparo. Mesmo porque ela me prometera que a cada ano nos encontraríamos, ela viria me ver. Mas como se conta, como se quantifica a saudade em um ano? Eu não sabia e desde a ocasião dessa notícia meus dias se resumiram na espera da temível partida. Antes porém, o casarão foi se modificando, não era mais o motivo de minha alegria; mas de apreensão e incerteza. Eu descobrira a fragilidade do grande sobrado que desmontava- se pouco a pouco no encaixotar dos móveis e adornos. Paredes frias se mostravam na ausência das cortinas retiradas. O velho fogão não iria na viagem da mudança, contudo já se apagavam em minhas lembranças suas últimas chamas.
Então, ajudando vovó a empacotar os pertences, que eu por muito tempo não mais veria, me deparei com o cinzeirinho verde, no engraçado formato de vaso sanitário, o qual quando não guardava as cinzas dos cigarros de vovó eu usava como cadeira para minhas bonecas. Nesse momento não contive as lágrimas. Vovó me abraçou fortemente e disse "fica com ele para sua casinha de brincar". Um enorme caminhão parou à frente e lá se foi embora tudo que constituía a casa de minha avó. Vento frio percorreu o sobrado vazio, de lugar onírico agora era lúgubre e sinistro.
Um ano já iria passar, eu esperava. Entretanto, passaram- se dois, três anos, e num dia radiante mamãe revolveu meu coração: "Adivinha quem vai chegar?". Essa lembrança não encerrei no passado, ela se estendeu no futuro, bem como dispõe-se inteira no presente. Nesse eterno retorno por minha avó compreendi as mudanças do mundo; numa espécie de amor fati, aceitei a vida com reverência e encontrei beleza nas imperfeições. Em tempo, o cinzeirinho quebrou- se um dia, mas continua incólume em significação.
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