Raimundo Fontenele foi indicado para a Academia Poética Brasileira.
TRÊS POEMAS DE ARROMBA E UM DE AMOR
Coisa difícil arranjar-se títulos originais. Aliás, após milhares de anos de civilização na terra, nada do que é realmente importante e verdadeiro é original. A internet, as redes sociais, a comunicação sem fio, instrumentos e aparelhos que o homem criou possuem talvez alguma originalidade, mas todo conteúdo que daí resulta é cópia, na maioria das vezes bem inferior ao original.
Cada poema pertence a um livro. O de amor é do livro Pelos Caminhos Pelos Cabelos, de 1982, cuja influência do movimento beat se faz notar, pois é resultado de uma experiência quando viajei pelo nordeste na companhia de alguns hippies, tendo abandonado escola, trabalho, e a segurança de um lar, pedindo carona e alimento e enfrentando o preconceito social e a fúria das polícias estaduais.
Vila das Palmeiras: fragmento de um poema longo que dá título ao livro A Colheita do Mundo, de 1986, obra composta de quatro partes: terra, água, fogo e ar, de grande fôlego e magia poética. Neste livro alcancei os mais altos momentos poéticos do meu ofício, embora também nunca tenha descido tanto, no que se refere à técnica e na verborragia muitas vezes desnecessária.
Chegamos agora ao poema Ode a W. Blake, integrante do livro Venenos, de 1994, e que, para alguns críticos, é o meu livro mais perfeito em todos os sentidos. Sem falsa modéstia, uma pequena obra prima da poesia maranhense contemporânea.
E finalmente a poesia O Mito, do livro A Via Crucis de um Poeta sem Nome. Escrito de um fôlego em no máximo 15 dias durante o meu período de abstinência, em 2014, quando consegui me livrar para sempre dos vícios mortais do álcool e das drogas. Os poemas deste livro vão da minha infância em São Domingos até os dias de efervescência e tumulto interior nos meus trinta anos vividos em Porto Alegre. Livro-catarse. Boa leituras, amigos.
POEMA DO AMOR EM DESCAMINHO
Raimundo Fontenele
1
há nas madeixas dos cabelos lindos
o mesmo gozo de peixes
novamente dentro dos olhos
tens aves rebrilhando
poucas gaivotas
fixas
me fitando
há no sorriso a face das paisagens
teus lábios trazem rios águas mares
a tua voz pungente fere a alva
2
teu rosto é como o rosto das planícies
3
tomar-te as mãos planuras sobre a terra
neste verde de ser que respiramos
úmidos de amor
que coisa respiramos?
4
atravessar-te lentamente
qual navio singrando as águas
e penetrando mares não sonhados
5
reter-te o pulso grave
(grávido de fogo)
quando silenciosa e nua
tiveres no olhar bronzes talhados
6
nadador em céus de sangue
piloto de aviões tragados
marinheiro de sombras naufragáveis
7
quem sentirá
no vago coração
folhas de duras lâminas
cortando
cortando
cortando?
VILA DAS PALMEIRAS
Raimundo Fontenele
Vila das Palmeiras
enfim te vejo
enfim posso curvado aos teus pés
dizer que nem tudo é mentira
do que escrevo
Gonçalves Dias
o Maranhão
teus beijos
posso dizer num verso tudo
do meu exílio
logros da infância
e do asco das manhãs quando respiro
viver é achar-me a vida inteira
ODE A W. BLAKE
Raimundo Fontenele
bom é viver o Céu e o Inferno
assim não me perco nem me salvo
nestas cidades com seus vestígios de vermes
cidade: pântano de serpentes
ancorado em alguma ilha
faísca verde, sentidos
o vômito, a fala
o Vento:
causador de doma na alma
primeiro eu e meus inimigos
Vencidos, toldo
“Abre-te, Paraíso!”
com o pênis exangue escrevo
sob a chama de maravilhosa lâmpada
por que o Bem? Por que o Mal?
Deus, uma escada que a gente salta
Deus, uma pestana do infinito
eu sou apenas o olho que vê
e vê tudo
O MITO
Raimundo Fontenele
Raspar com uma faca como se escama o peixe,
é fazer nascerem e crescerem os mitos que não nos pertencem.
E por ser o mundo um animal sem formas, por ele trafegam e voam
os mitos ancestrais que nos criaram,
e alimentaram em nós o dom
da forma mais que perfeita.
Blasfêmia é isto: erguer-se qual
um deus ferino e desalmado
para que ajoelhamos e lancemos
nossa rede ao mar: turva
água de amar, pescaria insana
e só por isso o mito permanece.
Se é para cair, sejamos justos:
o mito não é amor e não é ninguém,
apenas a imagem à semelhança desta outra
que nos devolve ao espelho.
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