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SALGADO MARANHÃO E A CICATRIZ DA POESIA DO SÉCULO XXI

Paulo rodrigues é membro da Academia Poética Brasileira.

20/11/2024 às 17h43 Atualizada em 20/11/2024 às 18h06
Por: Mhario Lincoln Fonte: Paulo rodrigues
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Arte: mhl
Arte: mhl

Paulo Rodrigues

“Vestígios

de pólvora nas palavras.

E quando há voz,

é a cicatriz que canta”.

(Salgado Maranhão)

 

       Salgado Maranhão é filho de Caxias (MA), mas vive no Rio de Janeiro desde o ano de 1973. Fora publicado pela primeira vez na antologia Ebulição da Escrivatura (Civilização Brasileira, 1978). É autor de Aboio — ou saga do nordestino em busca da terra prometida (1984), O beijo da fera (1996) e Solo de gaveta (2005). Ganhou o prêmio Jabuti (com Mural de ventos, em 1999) e o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2011, com A cor da palavra).

       Lançou, em 2017, pela Editora 7 Letras, o livro A Sagração dos Lobos que reafirma a inventividade, a força da sua voz e a alta capacidade de preparar os sabores da linguagem.

       Recentemente, lançou na Livraria da Travessa, no Rio de Janeiro A Voz que Vem dos Poros, que é uma seleção criteriosa de poemas que abrange mais de quatro décadas de carreira literária, o livro oferece um retrato profundo e multifacetado de sua trajetória.

      Seus poemas foram traduzidos para o inglês, italiano, francês, alemão, sueco, hebraico e o japonês. Como compositor, tem gravações e parcerias com grandes nomes da MPB, como Alcione, Ney Matogrosso, Dominguinhos, Paulinho da Viola, Ivan Lins e Elba Ramalho.

      A primeira letra do Salgado a fazer sucesso nacional foi Caminhos de Sol, que ele próprio comenta na Revista Revestrés (em março de 2017):

“Numa tarde ensolarada – tipicamente carioca – atendi ao telefonema do compositor Herman Torres, que me convocava, às pressas, para ir à sua casa ajudá-lo a compor uma canção a fim de reconquistar sua mulher, que tinha ido embora. Em 30 minutos nasceu “Caminhos de Sol”, que, milagrosamente, cumpriu sua missão. A música foi um sucesso absoluto na voz de Zizi Possi, e – mais tarde – com o grupo Yahoo virou tema da novela “A Viagem”, da TV Globo”.

       Não falarei dos livros, no momento. Irei abordar o poema “Tigres”, que li pela primeira vez numa postagem do poeta no Facebook. Vamos para análise:

 

Vejo que nos vês, agora.

 Foram cinco séculos

entre a Senzala e a Casa Grande. Cinco

duros séculos carregando fezes

de tua alcova; lavando

o sangue do teu mênstruo.

 Morreram sem promessa

os nossos ancestres;

cresceu sem nome a nossa linhagem.

 

E continuamos. Lavados em nove águas,

com a branquíssima flor dos dentes para sorrir.

 E morder!

 

        A poesia do Salgado Maranhão nunca esqueceu o som de um reino chamado Congo. No Mapa da Tribo há um culto aos ancestrais, que nos chama para refletir sobre o universo da cultura afro-brasileira. Aliás, todo o tecer poético salgadiano incendeia a desobediência, de um bom capoeirista.    

        Tigres não é um canto. É denúncia. Grito sufocando as correntes, enterradas no chão. No início, uma voz alforriada, esquece a mitologia e os orixás para despir a sociedade escravista, em nosso país:

 

Vejo que nos vês, agora.

Foram cinco séculos

entre a Senzala e a Casa Grande. Cinco

duros séculos carregando fezes

de tua alcova; lavando

o sangue do teu mênstruo.

 

      Vivemos num país escravista desde o zero ano de sua fundação. Dominamos o tráfico de homens e mulheres negras. Sem piedade, o colonizador aprendeu a bater e humilhar os que foram arrancados da Costa da Guiné, da Costa da Angola e da Costa da Mina. Não tinham alma, dizia a Santa Igreja. Por isso, “os cinco duros séculos carregando fezes”. O poeta consegue, com um golpe, retirar o mito da democracia racial, entre nós.

       Em seguida, Salgado Maranhão diz que nunca existiu solidariedade e irmandade com os homens afro-brasileiros. Relendo o discurso sociológico de Jessé Souza, pesquisador contemporâneo, autor de A Elite do Atraso da Escravidão a Bolsonaro encontro: “a condição de não humanidade dos escravos não permitia que eles acessassem algum direito ou tivessem participação social, portanto, a eles era renegado qualquer tipo de dignidade ou reconhecimento”.

        Salgado segue a vigília:

 

Morreram sem promessa

os nossos ancestres;

cresceu sem nome a nossa linhagem.

       

        Morreram mesmo, poeta, sem nome e sem promessas. O mais trágico é que continuam morrendo homens e mulheres negras (invisíveis). Pesquisa do Atlas da Violência 2018, ligado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que setenta e um por cento dos assassinados por ano são pretos. Há uma guerra de cor, entre nós.

       O Prof. Doutor José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, disse em conferência que fez na Academia Brasileira de Letras (06/06/2019): “lutamos para tonar legal a cota de dez por cento de alunos negros nas universidades federais. Queríamos dar oportunidade intelectual aos nossos irmãos excluídos historicamente. Observem o seguinte aspecto. Só no Rio de Janeiro tivemos quatrocentos mandatos de segurança contra as cotas”.  A exclusão continua na perversão histórica, da república antidemocrática do Brasil.

       Salgado Maranhão é universal. Um ser que ganha o mundo através da poesia. Mas nunca esqueceu os espaços de ‘ajuda mútua’ como meio para conquistar a liberdade.  Enfim, um tigre com flores nos dentes para sorrir e morder.

 

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Paulo Rodrigues (Caxias, 1978), é graduado em Letras e Filosofia. Especialista em Língua Portuguesa, professor de literatura, poeta, jornalista. É autor de vários livros, dentre eles, O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux, 2018).

Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma Interpretação para São Gregório.

Venceu o prêmio Literatura e Fechadura de São Paulo em 2020, com o livro Cinelândia.

É membro da Academia Poética Brasileira e da Academia Caxiense de Letras.

 

 

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