*Mhario Lincoln
Falar da versalização universal de Salgado Maranhão, no meu caso, é descobrir o conceito básico usado na pintura de Michelangelo na construção das imagens da Sistina. Ou, de forma cósmica, quando o leio, a mim me parece ser um Monge Kensei expandindo a forja para atingir a perfeição da forma. Assim, vou na carona de Aristóteles e ratifico o que penso da poética de Salgado: "A poesia é mais filosófica e elevada que a história; pois a poesia exprime o universal, enquanto a história trata do particular."
E isso é uma grande verdade. Basta ler com acuidade o poema abaixo, para saber de toda uma história lírica e verdadeira, nos versos rápidos construídos pela abissal capacidade lírica desse poeta nascido maranhense, tornado-se universal:
Memorália I
A chibata nos sujou de maldições.
Desde as caravelas, desde
a rota dos tubarões (onde
excretou-se o vil
ao sangue).
Toda a partilha está contaminada.
(Nossa alma cheira o mal do mar).
Precisamos lavar nosso atlântico.
Ora, é explícita a habilidade que o autor tem em fundir temas sociais profundos, com uma expressão lírica rica e envolvente. Sua obra explora as raízes históricas e culturais do Brasil, trazendo à identidade lógica (e ilógica), questões relacionadas a opressão e a busca por redenção. Porém, a poesia que Salgado exprime, não se resume ao chão, propriamente, vai além, atinge o universal, enquanto a história trata do particular.
Quem lê esse poema com acuidade, vai se emocionar, conhecendo (ou não) a história. Isso porque no poema "Memorália I", esse grande poeta me fez mergulhar nas profundezas da memória coletiva para revelar as cicatrizes deixadas pela colonização e pela escravidão. A imagem da "chibata" que nos "sujou de maldições" evoca a violência física e psicológica infligida aos povos escravizados, cujas consequências reverberam até os dias atuais.
Desde as "caravelas", símbolo do início da colonização, até a "rota dos tubarões", referência ao Atlântico como cemitério daqueles que pereceram durante a travessia forçada, o poema traça um panorama sombrio da herança colonial. Aliás, aqui, neste ponto, tentei refletir um pouco mais sobre esse panorama sombrio da herança colonial brasileira, e pude entender as dolorosas memórias dos navios negreiros que cruzaram o Atlântico. Veio a imagem dos horrores descritos por Castro Alves em seu célebre poema "O Navio Negreiro", onde ele exclama:
"Era um sonho dantesco... o tombadilho,
Que das luzes avermelhadas o brilho
Em sangue a se banhar."
(Castro Alves, "O Navio Negreiro", 1869)
Desta forma, nesse poema, há sim, resquícios na pele e no sangue de Salgado, pois ao evocar tais referências, acaba evidenciando as cicatrizes profundas que esse passado deixou na sociedade contemporânea. Incrível como um poema feito um século depois, ainda exibe uma conexão sensível tentando urgir o mesmo grito contra as raízes da opressão, fincadas no ectoplasma salgadiano. Isso me leva a convidar para a mesma mesa, neste instante, o velho Joaquim Nabuco. Ele escreveu: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil." (Nabuco, 1883). Destarte, esse poema de meu conterrâneo Salgado Maranhão, a mim me pareceu uma ponte entre o passado e o presente, instigando uma reflexão profunda sobre a necessidade de confrontar e superar as injustiças históricas que ainda permeiam o tecido social brasileiro.
Por isso, Salgado usa algumas expressões sufocantes: "excretou-se o vil ao sangue". Isso sugere que a maldade e a crueldade foram enraizadas profundamente no tecido social, contaminando toda a "partilha". (Que das luzes avermelhadas o brilho/ Em sangue a se banhar", de Castro Alves). Essa contaminação não é apenas física, mas também moral e espiritual, como indicado pela afirmação de que "nossa alma cheira o mal do mar".
E, no apelo final — "Precisamos lavar o nosso atlântico" — uma apoteose versicular – Salgado Maranhão faz seu chamado à purificação e à reconciliação com o passado, pois, não se trata apenas de limpar o oceano físico, mas de enfrentar e sanar as feridas históricas que afetam a sociedade brasileira.
Será que conseguiremos, poeta?
Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.
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