*Mhario Lincoln
A poesia "Sou Negra" de Maria José da Silva acabou me levando por um caminho: algo como a força do grito de Maria Firmina dos Reis, cujas abordagens sempre passaram pela opressão dos negros no Brasil. A prosa de Firmina reflete um humanismo profundo e uma crítica incisiva ao sistema escravagista, questionando as estruturas sociais injustas.
Com base nesse invólucro e que me apercebi do poema “Sou Negra” de Maria José da Silva, da Academia Poética Brasileira. O título é uma afirmação poderosa da identidade negra no contexto contemporâneo; uma espécie de fonte de orgulho e honra, contrabalançando séculos de estigmatização.
Maria José me parece fazer um forte chamado à ação e à resistência, enfatizando a necessidade de reconhecimento dos direitos e da dignidade da população negra. Além disso, ainda me veio a ideia de chamar para a mesma mesa, outra mulher extraordinária: Carolina Maria de Jesus, em cujo livro "O Quarto de Despejo", escreve a seguinte pérola:
“A favela é o depósito de lixo humano.”
(Quarto de Desejo, 1960)
Ora, acredito eu que ambas as escritoras utilizam a literatura como ferramenta de transformação social. Igual outro nome imortal, Conceição Evaristo in "Vozes-Mulheres":
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos. (...)
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome. (...)".
Vale dizer, após esses exemplos, da importância de ter citado essas mulheres extraordinárias. É porque, dentro da simplicidade - a priori - a elas concedida, ultrapassam os quilates egóicos de dezenas de superpoetas, empoderados, na frágil ilusão de um olhar de Pirro. Não vou longe. Confesso que chorei várias vezes lendo, por exemplo, Manoel de Barros, exemplo maior de o que “o simples”, é extraordinário.
Gente, urge colocar na cabeça, de uma vez por todas, que a simplicidade poética é crucial em tempos do modernismo lumiar e da dinâmica eletrônica, porque ela torna a poesia acessível e ressonante para um público mais amplo, especialmente neste mundo repleto de informações complexas e rápidas.
Aí é que a simplicidade - só ela - permite que essas mensagens poéticas sejam compreendidas e apreciadas sem barreiras. Além disso, a simplicidade pode capturar a essência das emoções humanas de maneira direta e poderosa, tocando profundamente os leitores. Imagina só o que Barros escreveu. É simplesmente plumático:
"Eu penso renovar o homem usando borboletas."
("Compêndio para uso dos pássaros,1961", Manoel de Barros).
Mutatis Mutandi, a poeta Maria José da Silva, tornou-se singularmente simples e espontânea ao escrever o que pensa, sente e anseia, como neste poema que ora analiso. Maria José consegue transformar a dureza da vida - e ela perdeu uma das filhas recentemente; e isso a machucou muito - em poesias que denunciam, emocionam e provocam reflexão, construindo sua lírica, partir do coração, numa linguagem acessível para relacionar a luta, a resistência e a esperança de quem vive e passa por tantos problemas sócio-orgânicos.
Portanto, em "Sou Negra", nas filigranas, há uma necessária instrumentalização da denúncia social e da afirmação da identidade negra. Quando pedi para ela me enviar uma poesia, ela preferiu escrever uma nova e qual não foi minha surpresa ao ler "Sou Negra". Volto a dizer: apesar da simplicidade linguística, seus versos carregam uma profundidade emocional e social que refletem a luta histórica e contínua da população negra no Brasil.
Desde o início, a poeta escreve com orgulho: "Sou negra com toda honra", estabelecendo um tom de autoafirmação e valorização da própria identidade. E ao reconhecer que não nasceu de “Sangue Azul”, ela questiona as estruturas sociais das elites egocêntricas, que historicamente sempre tentaram marginalizar a produção (quaisquer que sejam) originárias dos negros. A menção aos antepassados que "sofreram nesse país" evoca a memória coletiva da escravidão e das injustiças sofridas, conectando o passado ao presente.
Eu realmente me emociono muito quando leio Maria José. Especialmente quando escreve: “Ainda hoje sofremos por causa da nossa cor”. Esse verso ressalta a abundância da discriminação racial, enraizada na sociedade. No entanto, de forma criativa, ela contrapõe essa realidade com uma declaração de autoestima: "Ser Negro não é vergonha, sou feliz como eu sou". Aqui está a prova indelével de sua resiliência emocional e sua maturidade enquanto gente!
Mais na frente, os versos mencionam os negros nas senzalas que "cantavam suas canções" e cujas tradições são "raízes das nações". Acabam por enfatizar a contribuição cultural e histórica dos africanos e afrodescendentes. Maria José confirma, assim, que, apesar das circunstâncias desumanas, os escravizados mantém vivas as suas culturas e tradições, enriquecendo a identidade brasileira.
E por fim, quando versifica "Sou Negra, porém, sou gente", a poeta confronta a desumanização histórica dos negros. O uso do "porém" ressalta a necessidade de afirmar algo que deveria ser óbvio: a humanidade das pessoas negras.
Desta forma, autora transmuda seu 'poema simples' numa mega bomba atômica, prestes causar graves danos nessa elite intelectual agastada. Destarte, ela acaba por expressar um desejo universal por liberdade e igualdade: "Sonho com nossa liberdade sem tantos preconceitos, queremos nossos direitos". Este é um chamado à justiça social e ao fim das discriminações que impedem a plena realização dos indivíduos negros na sociedade.
Finalmente, ao mencionar o "Dia da Consciência", Maria José traz à tona a importância da reflexão contínua sobre a questão racial, desejando que essa consciência não se limite a um dado específico. "Que não seja só um dia. Não percamos a esperança de vivermos como gente". Isto é, de ser interpretado como um apelo para que a luta contra o racismo seja constante e que a sociedade avance rumo a um futuro mais igualitário.
Nestas rápidas linhas, sou réu confesso. Minha admiração pela poética da minha confreira de Academia Poética Brasileira; um testemunho da força e da resiliência que sangra em cada verso seu - nesse poema específico. Através de sua voz, urge entender que esse poema é um grito para manter viva a esperança onde todos possam "viver como gente", sem os grilhões do preconceito.
Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.
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