Quando a rua é igual a um sonho, com pedrinhas de brilhante.
*Mhario Lincoln
“Os livros são essenciais que nem órgãos humanos: o Coração é um romance, pulsa com sentimentos intensos. O Cérebro é um livro de filosofia. Processa ideias e guia nossas ações. O Rim, um livro de mistério, filtra apenas o essencial. Os Olhos, são livros de poesia. E os Pulmões, livros de aventura, que nos dão o oxigênio da liberdade e da exploração”. (Mhario Lincoln).
Imagine duas ruas cheias de vida. Ambas com farmácias, bares e restaurantes. A primeira é funcional, prática, e atende às necessidades imediatas do corpo e do lazer. Mas a segunda tem algo mais. Uma livraria bem no centro dela. Esse espaço não é apenas um ponto de comércio, mas um desenvolvimento cultural. Isso porque, a meu ver, uma livraria transforma uma rua em um lugar cravejado de brilhantes para reflexão, aprendizado, troca de ideias e porque não, alimento para a mente e a alma. Assim, eis-me aqui, em Jurerê, bairro-praia a alguns quilômetros do centro de Florianópolis (SC).
Lugar realmente tranquilo. Precisava disso após duas sérias cirurgias pelas quais passei. Respirar o mar, adormecer com o som das ondas e olhar o pôr-do-sol diferenciado em Santo Antônio de Lisboa. Tudo isso seria rejuvenescedor? Sim. Porém, se acompanhado de uma boa leitura. E foi assim que descobri, ao lado do condomínio onde estou hospedado, a “Livraria e Revistaria Guga” de duas pessoas simplesmente sábias e hábeis, há 15 anos nessa luta de imprimir maior oportunidade a todos que procuram Jurerê, se deliciarem com lançamentos, sejam de simples revistinhas HQ até livros, como os atualíssimos de Carla Madeira que no ano passado conseguiu a incrível marca de 155 mil exemplares vendidas, incluindo, uma de suas obras-primas: “Tudo é Rio”, onde ela conta a história de Dalva e Venâncio, um casal cuja vida é transformada, após uma perda trágica.
Então, pensa comigo: ainda é um bom negócio abrir uma livraria física em meio a tantas farmácias, bares, restaurantes e espaços digitais cada vez mais autômatos? Para Ricardo Cerqueira Lima e sua esposa Luciana Medeiros Swierk Lima, sim!
Pois bem, logo no primeiro dia em que cheguei a Jurerê, de longe, observei uma placa que indicava a “Livraria Guga”. Havia trazido comigo apenas um livro para ler em 5 dias, “Clarice Lispector/entrevistas”, que aliás, estou adorando por descobrir o outro lado de Clarice, além da poética avassaladora. Só que ao abrir a minha malinha de mão, lá no fundo, também encontrei “Amor Líquido”, do fantástico Zygmunt Bauman o qual havia comprado na viagem anterior e não me lembrava mais.
Porém, quando há uma livraria, tudo muda. Deixa de ser uma rua comum ou um ponto de vendas e passa a ser – gloriosamente - um espaço de encontro para ideias, debates e descobertas.
Após conhecer os donos e estudar um pouco o local, logo senti a forte influência dessa loja física na comunidade. Enquanto conversávamos, ao cair da tarde, à porta do estabelecimento, vi-me quase atropelado por uma mãe e filha, que entraram correndo na loja para adquirirem utensílios de leitura. Mas em dúvida, recorreram a Luciana, a livreira, que logo colocou as coisas nos devidos lugares. Ou seja, mais uma razão para a Livraria ser algo diferente ao orientar e incentivar o hábito da leitura, fundamentando, desta forma, o desenvolvimento pessoal e coletivo. (Achei magnífico ter assistido a isso).
Um detalhe, porém, tem que ser dito. A excelente atitude de Luciana, infelizmente, não está no contexto brasileiro. De acordo com a pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil", realizada recentemente pelo Instituto Pró-Livro, apenas 47,3% da população brasileira pode ser considerada leitora — aqueles que tentaram ler pelo menos um livro nos últimos três meses. Desses, apenas 2,5% dos leitores leem o livro até o final.
Comparando outros países da América Latina, o índice de leitura brasileira ainda é muito baixo: então, porque abrir livrarias físicas diante de um quadro tão preocupante? Imediatamente me lembrei daquela história que aprendi em meu primeiro curso de marketing, quando cursava a Faculdade de Jornalismo.
Era assim: uma grande empresa de sapatos decidiu investir na Índia e abriu concurso para contratar um bom vendedor para oferecer sapatos à população indiana. Ao final, ficaram dois concorrentes para responderem a uma última pergunta. “Vai dar certo vender sapatos na Índia?”. Um deles falou que não, porque a maioria da população andava descalça e não fazia questão de sapatos. O segundo, entretanto, respondeu: “Essa será a maior oportunidade de minha vida. Vender sapatos para a maioria da população que anda descalça”.
Da mesma forma, o casal Ricardo e Luciana, da “Livraria Guga”, em Jurerê-Florianópolis-SC, apostou na segunda ideia; comparativamente, se ainda poucos leem no Brasil, porque, então, não fomentar a formação de uma nova safra para disseminar a importância da leitura? E assim fizeram. Se passaram 15 anos e seus inúmeros clientes (eu também) começaram a conhecer a importância da leitura. “Já recebemos clientes de 15 anos que vieram na barriga da mãe”, disse-me orgulhoso o empresário e livreiro, Ricardo Cerqueira Lima.
E essa atitude vai muito além do simples comércio de livros. A leitura é essencial não apenas para o desenvolvimento intelectual, mas também para a formação de cidadãos conscientes e engajados. O filósofo e educador brasileiro Paulo Freire certa vez, destacou a importância da leitura crítica do mundo: "A leitura do mundo precede a leitura da palavra". Freire enfatiza, desta forma, que a compreensão da realidade é fundamental para a transformação social, e a leitura é uma ferramenta chave nesse processo.
Desta forma, a inclusão de uma livraria em uma rua não é apenas uma questão comercial, mas um investimento no capital cultural e social da comunidade. Cada cidadão brasileiro pode fazer sua parte. Eu faço a minha divulgando essas coisas bonitas que explodem no cotidiano das cidades. Acho mais conveniente do que mostrar só violência, “drogas and rock'n'roll”.
Assim, promover a leitura – seja de forma simples ou de outras formas, é fazer o desenvolvimento humano em sua plenitude. Mesmo que algumas políticas públicas ainda não tenham se dado conta da importância de tais ações, deixando a maior responsabilidade para a iniciativa privada que, de uma forma ou de outra, acaba por “desdobrar fibra por fibra, o coração”, como escreveu no poema “Mãe”, meu conterrâneo do Maranhão, Maximiano (Coelho Neto), para romper com esse marasmo educativo de algumas gerações passadas, alcunhadas de “gerações do silêncio”. Portanto, que se abram mais livrarias físicas e espaços culturais em todos os cantos do país. Um dia, alguém irá agradecer de joelhos no chão”.
Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira (APB).
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Referências:
Instituto Pró-Livro. (2019). Retratos da Leitura no Brasil . Recuperado do Instituto Pró -Livro
Freire, P. (1989). A Importância do Ato de Ler . São Paulo: Cortez.
Maximiano Coelho Neto, “Mãe”.
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