PAULO RODRIGUES ENTREVISTA O POETA SALGADO MARANHÃO
Salgado Maranhão nasceu em Caxias (MA) e desde 1973 vive no Rio de Janeiro. Seus primeiros poemas foram editados na antologia Ebulição da escrivatura (Civilização Brasileira, 1978). É autor, entre outros livros, de Aboio — ou saga do nordestino em busca da terra prometida (1984), O beijo da fera (1996) e Solo de gaveta (2005). Ganhou vários prêmios, entre os quais, o Jabuti (1999, com Mural de ventos) e o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2011, com A cor da palavra). Seus poemas foram traduzidos para o inglês, italiano, francês, alemão, sueco, hebraico, japonês e esperanto. Como compositor, tem gravações e parcerias com grandes nomes da MPB, como Alcione, Elba Ramalho, Dominguinhos, Paulinho da Viola, Ivan Lins e Ney Matogrosso
A Cor da Palavra, livro de Salgado Maranhão
1. Paulo Rodrigues – Poeta Salgado Maranhão, você viaja bastante pelo Brasil e exterior, por conta das palestras em torno da sua obra. A poesia é a dona da sua existência?
Salgado Maranhão – Eu viajo bastante pelo Brasil e, também, pelo exterior levado pela poesia e pela minha diferenciada história de vida, que têm gerado interesse em muitos lugares. De 2007 para cá, fui aos EUA 9 vezes a convite de mais de 100 universidades, em 35 estados americanos, onde estudam minha obra e onde editaram 5 livros meus. Além disso, meus poemas traduzidos pelo grande tradutor, Alexis Levitin, foram publicados em mais de 60 revistas literárias (até no The New York Times). Em Harvard, um professor de literatura e estudos brasileiros, me disse, certa vez: “Nós queremos sua poesia, porque, semelhante a João Cabral e Guimarães Rosa, ela nos dá um Brasil que nós não tínhamos.”
2. Paulo Rodrigues – Poeta, você afirmou em uma entrevista: “o Oriente me deu a disciplina formal de um samurai”. O processo criativo de Salgado Maranhão é disciplinado?
Salgado Maranhão – Tendo chegado ao Rio de Janeiro, ainda muito jovem, sozinho, sem família, para trabalhar e estudar, escolhi o amparo da filosofia e das práticas ritualísticas e marciais do Oriente, ao invés de afundar o pé no mundo dionisíaco abundante que a cidade oferecia. Isso me trouxe uma saudável disciplina que me ajudou em todos os sentidos, desde os cuidados com a alimentação, à criatividade literária, propriamente dita. Em si, a poesia já é aleatória em sua própria forma de entregar-se (não a escrevemos quando queremos, mas, quando ela quer), porém, precisamos estar aparelhados para recepcioná-la, conhecer nosso instrumento de trabalho. Afinal, não se consegue beber o rio sem fechar as mãos.
3. Paulo Rodrigues – Como foi seu contato com a Tropicália? E com Torquato Neto? Esses contatos foram definitivos, na vida de Salgado Maranhão?
Salgado Maranhão – Quando emigrei com minha família para Teresina, no final da década de 1960, pré-adolescente, ainda não tinha completado minha alfabetização, mas, logo depois, descobri uma biblioteca pública, que, a rigor, foi minha grande professora. Ali havia alguns dos melhores clássicos da literatura universal, que foram fundamentais na minha formação. Eu os levava emprestado e os lia à luz da lamparina, tal o grau de pobreza em que vivia (se existe uma coisa que fiz desde menino, foi deliberar o que eu quis ser, ao invés de ficar me queixando e botando a culpa nos outros). Com a leitura, dei um tremendo salto qualitativo: tanto nas matérias do meu currículo escolar, quanto na organização da forma de pensar. Quando saí da região rural, com a sintaxe fraturada, foi iminente o choque cultural, que com a inserção da leitura, fui perdendo a fala camponesa, sem adquirir a voz urbana, fator que ocorre a muita gente que sai do campo para a cidade. Com a leitura, dei ordem a meu discurso e, muito mais, criei um jeito próprio de expressar-me que alimenta minha linguagem até hoje. Toda essa perspicácia cognitiva, levou-me a encontrar meus pares no mundo da cultura. Assim, quando em 1972 eu conheci Torquato Neto, já era um produto humano aproveitável para alcançar novos voos.
4. Paulo Rodrigues – Você é um compositor destacável da Música Popular Brasileira. Como você elaborou a música Caminhos do Sol, em parceria com Herman Torres? Tem parcerias novas? É um poeta da canção como o foi Vinicius de Moraes?
Salgado Maranhão – Minha canção Caminhos de Sol surgiu numa tarde carioca ensolarada: meu parceiro Herman Torres telefonou-me pedindo que eu fosse à sua casa letrar uma melodia que ele acabara de compor para sua mulher que tinha ido embora com seus dois filhos pequenos. Eu fui ao seu encontro e a letra saiu em 20 minutos, como num passe de mágica. O resto da história todos já conhecem, virou sucesso nacional com a Zizi Possi e com o grupo Yahoo, na novela da Globo A Viagem.
No Brasil, a década de 1970 foi o repositório das transformações que começaram em 1960, sobretudo na MPB. Os discos Clube da Esquina, de Nascimento e sua turma, é de 1972; também os discos Transa, do Caetano Veloso, Construção, do Chico Buarque, Expresso 2222, de Gilberto Gil e Acabou Chorare, dos Novos Baianos. Além de uma grande coleção de gravações lançadas pela Editora Abril Cultural, em que os discos eram acompanhados de fascículos com a história detalhada dos artistas envolvidos (que iam de Pixinguinha, Luiz Gonzaga, Caymmi a Milton, Chico e Caetano, Paulinho da Viola…) e, naturalmente, seus parceiros. Foi aí que eu fiquei sabendo da importância da Tropicália e da existência do Torquato Neto. Todas essas informações somadas às que eu já tinha, explodiram minha cabeça. Foi quando, em junho deste mesmo ano, o Torquato veio Teresina passar uns dias com seus pais e tive oportunidade de conhecê-lo e receber sugestões de caminhos valiosas até o dia de hoje.
A voz que vem dos poros, antologia da poesia e trilhas de Salgado Maranhão.
5. Paulo Rodrigues – A antologia "A Voz que Vem dos Poros", lançada pela editora Malê, tem recebido muitos elogios por parte da crítica. Como foi o processo de escolha dos textos? É um trabalho que resume a poética de Salgado Maranhão?
Salgado Maranhão – A antologia "A Voz Que Vem dos Poro"s foi uma ideia do editor da Malê, Vagner Amaro e do professor, Rafael Quevedo, da Universidade Federal do Maranhão. Eu apenas corroborei dando alguns pitacos. Não quis interferir muito, como sempre faço com tudo que envolve meu trabalho. Deu certo. Saiu matérias e resenhas nos principais jornais do país. Agora, o livro segue sua trajetória em feiras literárias e lançamentos. Ele é um estrato bem representativo de tudo que eu produzi nestas últimas décadas.
6. Paulo Rodrigues – Salgado, você também é autor de literatura infantil. Fale um pouco sobre esse trabalho. É importante oferecer literatura desde cedo para as crianças?
Salgado Maranhão – Além de publicar 15 livros de interesse geral, escrevi também alguns infantis com temas regionais, ilustrados por Antônio Amaral, um gigante da iluminação. O objetivo dessas obras é desenvolver na criança um olhar poético sobre as coisas. Mostrar que tudo que se vê na vida tem desdobramentos e transcendência. Essa sensibilidade pode-se criar desde a mais tenra idade, um olhar perscrutador, que não se renda ao óbvio.
7. Paulo Rodrigues – Poeta, como está a sua programação e o seu trabalho cultural, no momento? Quais os projetos novos?
Salgado Maranhão – No momento, eu estou com vários projetos em curso, como sempre. Ainda este ano sairá mais um livro infantil com temas eminentemente maranhenses. Também sigo a produzir canções com meus parceiros para gravações futuras. No próximo ano sairá pela Editora Malê o livro de uma grande poeta americana (Tracy Smith)), que tem tradução minha e de Alexis Levitin (alguns desses poemas já saíram em 3 páginas da Revista Piauí de setembro. Minha inquietação não me permite indolência.
8. Paulo Rodrigues – Você foi eleito para a Cadeira 7 da Academia Maranhense de Letras, que era ocupada pelo escritor Antônio Carlos Lima. Como será a posse? O que a AML pode esperar do encantador de palavras?
Salgado Maranhão – A Academia Maranhense de Letras pode contar com meu espírito de respeito e harmonia na convivência com meus confrades e confreiras. E, mais do que isto, minha boa vontade em colaborar com a instituição, na medida dos meus limites.
9. Paulo Rodrigues – Por tudo que tem feito pela poesia de Língua Portuguesa, você é cotado para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Pretende concorrer novamente?
Salgado Maranhão – Minha vida, desde o momento em que descobri a poesia e a abracei como instrumento de crescimento pessoal e diálogo ético e estético com meus semelhantes, tem sido o de aperfeiçoar, cada vez mais, meu olhar e minha linguagem. Um poeta fala a partir do seu lugar de origem, projetando-se em direção a quaisquer outrens. A língua é sua ponte de sustentação para esse encontro. Por isso, é importante que o poeta conheça a medida e o peso de cada vocábulo. Não para ser subserviente a seu significado previsível, mas, para prospectar novos significantes que atendam situações imprevistas que não cabem mais em velhas palavras. Eu, da minha parte, não busco, necessariamente, a palavra exata, busco, na maioria das vezes, a palavra resvalante, que, uma vez acenando ao que está posto, esgarça a sintaxe rumo a outro entendimento. Porém, isso não pode ser uma fórmula, nem deve ter aplicação regular, é somente a luz da forma sem o método. Concorrer é plausível.
10. Paulo Rodrigues – Deixe uma mensagem para os nossos leitores.
Salgado Maranhão – O que tenho a dizer ao leitor de poesia e aos poetas, é que mergulhem nos grandes autores, lendo com o sentimento de apreensão do espírito do poema, não só da morfologia, onde a palavra é apenas carne. Ressuscitem o prazer da leitura pelas afinidades com seus autores favoritos, sem alegria de viver, ninguém suporta a existência. Obrigado, meu poeta. AbraSal!
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Poemas de Salgado Maranhão
Lacre 1
Uma larva de espinho
mordeu-me o sonho. E
atravesso a noite
sangrando pétalas.
Com esses uns
que alumbram meus arco-íris
— através dos olhos —
durmo sob a Via Láctea
e a cortesia dos predadores.
Desolada em seu próprio
couro,
geme a poesia
na porta do matadouro.
Lacre 2
Sonhei uma flecha Karajá
chispando o vento. Da taba
à Civilização do prepúcio. Sonhei
um ramo de espírito: o urucum
no Corão.
Que mar é esse
que inunda meus guizos?
que arcabouço alçará
minhas ramas de luz?
Um sol há de haver
para os que têm fome
de aurora, para
os roedores de silêncio.
Há um tempo de negar
o sangue ao sepulcro (negar
o osso ao machado).
A vingança entornou-se
no furor que devassa
o nosso umbigo (e
onde Deus esqueceu-se
das anjos?).
São matilhas uivando
o que resta.
Lacre 3
O mundo em seu lacre
de vidro,
agenda-se
para nutrir abismos: seu
pacote de raios; seu
tempo em demasia.
(E os anjos jantando crack,
e os porcos na sacristia).
Por isso edito esta cruz de sabres
nesse cardume de ontens,
nesse arremedo de eternidade.
Juro que vi
o século enfermiço decapitado
na cara da TV (a morte globalizando-se
em Pedrinhas ou em Kandarhar);
Juro que vi
a morte narcísica
e seu personal trainer: não matam
para infamar os céus, matam pelo prazer
de doer, matam
para querer ser Deus.
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