A escravidão, ontem e hoje: o grito lírico não morre!
*Mhario Lincoln
A poeta Socorro Guterres é bem diferenciada no que concerne à criação melódica e organização de seus versos. Eu já havia detectado isso desde a leitura da prosa "Nos Domínios da Linguagem (Veredas)", onde fica evidente essa fricção emotiva da vontade dela, com o prazer do texto.
Lembro que na ocasião, ao resenhar esse livro-ensaio, disse:
“Na verdade, raríssimos leitores conseguem ter prazer quase voyático, da dança das letras no papel, formando frases e parágrafos. É preciso, antes de tudo, não ler apenas o conteúdo, mas entender a estrutura e o jogo de linguagem, ali impressa pela cabeça de quem as criou”. (Mhario Lincoln in FACETUBES/10/10/2024).
Ela usa isso com muita facilidade quando vai construindo poemas épicos de sua lavra como esse, abordando a poética específica de Castro Alves. O que se lê, portanto, é uma extensão gratificada da imersão total nos conceitos, ações, análises e antipreconceitos lógicos diante de uma história doída pela qual passou o Brasil.
Vale aqui lembrar, há alguns séculos, as ovarias manifestações contra injustiças sociais. E mesmo que no Brasil, não se tenha testemunhado movimentos abolicionistas consolidados, em períodos antanhos, alguns escritores começaram a questionar as estruturas sociais da época. Gregório de Matos, (1636 – 1696), conhecido como "Boca do Inferno", criticou a corrupção e a hipocrisia da sociedade colonial. Em seus poemas satíricos, ele aludia às injustiças sociais, ainda que não abordasse diretamente a escravidão.
Além disso, é relevante mencionar também (e eu já o fiz em outras resenhas), Luiz Gama, (1830 – 1882), um poeta e advogado que, como Castro Alves, lutou contra a escravidão. Em seu poema "Quem Sou Eu?", Gama expressa: "(...) Sou filho das selvas, das plagas distantes, / Eu trago nas veias o sangue dos bravos; / Eu trago na fronte vertigens radiantes, / Eu trago no peito o amor dos escravos (...)".
Séculos depois dessas manifestações, eis que Socorro Guterres retoma as rédeas do grito e estrutura as estrofes de seu poema "O Canto do Condor" com detalhes que alternam entre a evocação direta da obra de Castro Alves (sua base linear) e a descrição vívida das atrocidades da escravidão.
Guterres inicia referindo-se às "tantas estrofes" de Castro Alves que "hasteastes na escravatura / A bandeira da abolição", estabelecendo imediatamente uma conexão com o legado abolicionista. Isto é, ela utiliza imagens poderosas para retratar o sofrimento dos escravizados: "A dor infligida / A muitas e muitas vidas / Por seres ditos humanos". Esta dicotomia entre a humanidade autoproclamada dos opressores e suas ações desumanas intensifica a crítica social presente no poema.
Indo mais além, gostaria de comentar a referência direta a "O Navio Negreiro" de Castro Alves, pois essa, serve como um ponto central no poema de Guterres. Ao afirmar "Eu vi em O Navio Negreiro / Atrocidade funesta / Imposta a um povo inteiro", a poeta não apenas homenageia Alves, mas também reforça a continuidade da denúncia das injustiças.
Claro que sorvendo o que de mais dolorido ele escreveu: "Era um sonho dantesco... o tombadilho/ Que das luzernas avermelha o brilho, / Em sangue a se banhar (...)". Confesso que senti na pele o que Socorro Guterres capturou, nessa atmosfera dantesca ao descrever "porões abarrotados / De naus macabras em lentidão", trazendo à tona a desumanização e o sofrimento inerentes ao tráfico de escravos.
Mais adiante ela descreve: "Eram jovens guerreiros, mulheres luzidias, meninos sonhadores", ecoa essa valorização da humanidade e da identidade dos escravizados, ressaltando a perda cultural e pessoal resultante da escravidão. Isso imediatamente me ligou à linguagem emotiva e às imagens sensoriais utilizadas para intensificar esse impacto, aliás, uma marca registrada da autora. Termos como "atrocidade funesta", "naus macabras" e "rio de pranto" evocam sentimentos profundos de tristeza e indignação.
Por isso é que no primeiro parágrafo desta resenha me referi ao emprego de que eu chamo de "técnicas da personificação", onde ela dá voz aos escravizados, tornando sua experiência mais palpável para o leitor. A repetição de estruturas sintáticas, como em "Por homens, mulheres, crianças, e até mesmo anciãos", enfatiza a universalidade do sofrimento imposto.
Confesso, repito, que me emocionei muito lendo "O Canto do Condor". A meu ver, é uma poderosa continuação da tradição literária abolicionista brasileira. Destarte, ao homenagear Castro Alves e incorporar elementos de outros pensadores que refletiram sobre as injustiças sociais, Guterres não apenas mantém viva a memória das atrocidades passadas, mas também (e grita contra e investe na reflexão sobre as persistentes desigualdades, fazendo de sua poesia, algo como um lembrete de que a literatura é uma ferramenta vital para a denúncia e transformação social. Como Castro Alves declarou: "A poesia é a asa ligeira/ Que o pensamento humano conduz."
Que tal se todos fizermos nossa parte e buscar um mundo mais justo? ainda dá tempo!
Mhario Lincoln, presidente da Academia Poética Brasileira.
O POEMA
O Canto do Condor
( De Socorro Guterres p/ Castro Alves)
Em tuas tantas estrofes
Hasteastes na escravatura
A bandeira da abolição
De homens, mulheres, crianças,
E até mesmo anciãos,
Que por desvio da sorte
Caíram desgraçadamente
Na armadilha da submissão.
Navegando nas rimas
Clamorosas de teus versos
Conheci a dor inflingida
A muitas e muitas vidas
Por seres ditos humanos,
A traçar destinos perversos
No mar de percursos escusos.
Eu vi em O Navio Negreiro
Atrocidade funesta
Imposta a um povo inteiro.
E escutei teu brado de salvação
Para essa multidão
Traficada em aflição.
Tua poesia carregada de emoção
Exibe o sofrimento nos porões abarrotados
De naus macabras em lentidão,
Que traziam a negra gente,
Arrancadas a verdes prados,
Atravessando o oceano
Da mais vil degradação.
Eram jovens guerreiros, mulheres luzidias,
meninos sonhadores, e até mesmo frágeis anciãos,
Avaliados em inteira compleição
Para trabalhar na dureza do sol de longos dias,
E na frieza da noite acalentar as feridas do açoite.
Se não morriam no imenso trajeto
Do mar de navios fétidos,
Na saudade iam definhando,
Até por fim, no instante almejado,
Fechar os olhos para o rio de pranto.
E desse momento em diante
Já ouço teu outro canto
Que lembra ao caminhante,
Pelo sertão retirante,
Esse tão grande penar
Para, então, no andar constante
Não parar nem num instante
Quando A Cruz_na_Estrada avistar.
Bem lembro que nesse poema
Advertes que não vale a pena
Nem o alecrim cheiroso
Nos braços da cruz depositar.
Pois é de um escravo a humilde sepultura,
A quem a liberdade acabou de desposar,
Portanto, deixemo-lo em paz descansar.
Mas vale, sim, leitor errante,
Que aqui acaso passar,
Buscar no poeta louvado, Tão sublime descrição
Na qual desfiou a dor
Que plantou o nosso chão,
Na agonia secular vivenciada em exaustão,
Por homens, mulheres, crianças, e até mesmo anciãos.
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