O poema Representações, de João Batista do Lago, é uma peça de forte carga filosófica e crítica, que se presta à análise sob o enfoque da Esquizoanálise, método conceitual criado por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Esse método permite desestruturar as representações cristalizadas e evidenciar os fluxos de desejo reprimidos por sistemas de poder e crenças instituídas.
### *A morte da terra e do "velho pai"*
O poema inicia com a assertiva de que "a terra está morta", evocando um cenário apocalíptico que transcende o desastre ecológico. A morte da terra pode ser lida como a dissolução de um território simbólico e de suas representações estruturantes. Essa imagem dialoga com Nietzsche, especialmente com a "morte de Deus" anunciada em A Gaia Ciência. Assim como Nietzsche declara o colapso dos valores transcendentes que regiam a moral ocidental, o poeta anuncia o fim das representações tradicionais: “todas as crenças faliram”. Na perspectiva esquizoanalítica, essa falência remete à desmontagem das "máquinas de significação" que mantêm os sujeitos aprisionados em sistemas despóticos de sentido.
### *O deserto como multiplicidade*
O deserto que “cresce” ressoa diretamente a noção nietzschiana de que “o deserto cresce: ai de quem abriga desertos em si” (Assim Falou Zaratustra). Contudo, em Deleuze e Guattari, o deserto é também um espaço de potência, de onde brotam fluxos criativos após a desterritorialização de representações hegemônicas. Esse deserto não é vazio, mas uma multiplicidade: o lugar de recomposição do real, sem as amarras do significante transcendental.
### *Crise das representações*
Ao declarar que "todas as crenças faliram" e que "com elas todas as representações faleceram", o poema desmantela os pilares da metafísica ocidental: a crença na centralidade do Pai (Deus, autoridade patriarcal) e a fé em uma "verdade" universal representável. Como afirma Deleuze em Diferença e Repetição, a representação é o obstáculo maior ao pensamento criativo porque força a submissão à repetição do Mesmo. Nesse sentido, o poema proclama o triunfo de uma subjetividade errante e aberta.
### *O que resta? O despótico, o tédio e os fantasmas*
O eu lírico reflete sobre o que subsiste após o colapso do sistema representacional: “Consciências déspotas… tédio em todas as vidas… imagens girando representações”. Aqui, o poema ecoa a crítica de Deleuze e Guattari ao capitalismo tardio, que substitui o poder transcendente do Pai por um poder imanente e despótico, onde o consumo de imagens (fantasmas, mitos, tragédias) se torna o principal mecanismo de controle. Esse giro contínuo de representações vazias evoca a "sociedade do espetáculo" de Guy Debord, na qual as imagens não representam mais nada além de si mesmas.
### *Comparações com outros autores*
1. *Com Mallarmé e a poética do vazio*
O poema compartilha com Stéphane Mallarmé uma estética do vazio, especialmente na ideia de falência das crenças e no colapso das estruturas simbólicas. Assim como Mallarmé explora a ausência como motor criativo, Representações encontra potência na morte do Pai e das representações.
2. *Com Fernando Pessoa e o niilismo poético*
A atmosfera de tédio universal e a constatação de que "todas as crenças faliram" aproxima o poema do niilismo pessoano, especialmente em Tabacaria, onde o sujeito lírico afirma: "Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
3. *Com Samuel Beckett e o vazio existencial*
A imagem do deserto crescente e do tédio perene lembra o absurdo existencial de Beckett. Como em Esperando Godot, há uma suspensão do sentido e uma impossibilidade de resolução transcendental, deixando os sujeitos à deriva em um vazio repleto de imagens giratórias.
### *Conclusão*
Sob a ótica da Esquizoanálise, Representações opera como uma denúncia do colapso das máquinas de subjetivação patriarcais e religiosas, ao mesmo tempo que aponta a persistência de sistemas despóticos imanentes. Contudo, ao explorar o deserto e as ruínas das representações, o poema também abre espaço para a criação de novas formas de vida e sentido, livres do jugo do Pai morto e do Espírito que se mantém. Ele carrega uma potência esquizoanalítica ao desestabilizar certezas e afirmar a necessidade de inventar novas territorializações no deserto crescente.
Eis o poema analisado
O POEMA:
REPRESENTAÇÕES
De João Batista do Lago
Vocês ainda não perceberam
que a terra está morta?
Não se deram conta
que o velho pai está morto?
Saibam todos:
todas as crenças faliram
e com elas todas as representações
faleceram
A terra, acreditem vós,
é tão-somente um grande deserto!
Deserto que cresce
porque o velho pai está morto
e o filho também
─ assim como o espírito se mantém!
─ Então o que nos resta?
─ “Consciências déspotas…
tédio em todas as vidas…
imagens girando representações:
fantasmas, mitos e tragédias.”