Mhario Lincoln(*)
Ao introduzir nuances singulares em seu poema “Ocaso”, que ora analiso; e nesse primeiro 'ler', notei que Bernadéte Schatz Costa sugere poeticamente um crepúsculo que transborda o sentido físico para abrir um horizonte simbólico e filosófico. Esse “ocaso” não se restringe às características do entardecer, mas, em meu entendimento, se projeta sobre o campo do onírico, da experiência íntima, do mergulho no inconsciente e na essência mesma da condição humana.
Cada verso, feito em profundidade, reencena a queda da luz do dia como metáfora de um processo interior de rarefação e potencial renascimento. Sim. 'potencial renascimento'. É essa a lógica. Porque logo na primeira imagem, “No fundo dos sonhos”, eu percebo uma descida ao mais íntimo da consciência, quase um retorno a uma matriz oculta, um espaço primordial além das fronteiras racionais, como se poético de Bernadéte quisesse apertar com a mão a água o jorro da fonte primeira, do ser anterior, muito antes da autoprojeção sensível do próprio mundo.
Então, ao fechar os olhos “para descansá-los”, se explicita, aí, uma recusa do visível, do estímulo constante, em favor do recolhimento, do descanso interior que não simboliza a ignorância, mas um estado de sensibilidade ampliada, uma forma de percepção que tenta transcender a mera imagem superficial. E mais na frente, mencionar o “piscar” e o relacionado com “água-benta”, a poeta beatifica o efêmero, no mesmo instante em que a purificação do olhar, torna-se uma espécie de batismo sensorial na busca pela essência, a partir da interrupção dos hábitos visuais.
Nesse mesmo espírito, o “Sopro que rumoreja na face” passa a representar a sutilíssima faixa entre o interno e o externo, o fio imperceptível que costura o indivíduo ao Cosmo e torna a existência um encontro constante entre a finitude humana e a imensidão do ser. Desta forma, ao sonetar “Enternece em aventuras secas” ela confronta a mim com a fragilidade do mundo natural, com a segurança, a perda do viço e a transitoriedade resultante da matéria, o que evoca a consciência de impermanência tão cara ao pensamento filosófico oriental e estoico.
Em seguida, a menção ao “fogo dos sonhos” que “entardece” incorpora uma ideia central do ocaso: o fogo simboliza a força do criador, o impulso que alimenta a imaginação, a energia primária que anima a psique. Quando esse fogo declina, não assistimos apenas ao término de um dia, mas a uma transformação de estados da alma e do próprio ser. É nessa confluência entre o mundo natural e o mundo interno que o poema adquire um tom filosoficamente vigoroso, lembrando a máxima camoniana da inconstância universal, a mudança perpétua, o devir que não cessa de reorganizar as fronteiras do que entendemos por realidade.
Tal atmosfera também aproxima o poema de sensibilidades poéticas que tomam o efêmero como fonte de sabedoria, como se vê na obra de Cecília Meireles, na qual o instante existe com plenitude em sua própria brevidade. Desta forma, no meu delinear, este poema “Ocaso” é, sim, um convite a reflexão sobre a impermanência e o eterno devir, a consideração a beleza e a profundidade filosófica no recolhimento das imagens, na segurança das aventuras, no piscar dos olhos que restaura o olhar sagrado, na ritmada alternância entre sonho, fulgor e declínio.
Aproveito para destacar um dos principais insights do poema que me chamou muita atenção: a ideia de "impermanência e o eterno devir", isto é, uma concepção do real como um fluxo constante e ininterrupto de transformações, no qual nada permanece fixo ou estável. Ou seja, a liberdade poética de Bernadéte ensina que a existência não é um estado a ser realizado, mas um processo contínuo de mudanças, uma corrente em perpétua metamorfose.
Heráclito, a quem li recentemente, encarava o Universo como um “pantarhei” — tudo flui. Mutatis Mutandi, “não há ser estático, apenas o tornar-se, o vir-a-ser incessante(...)”. Isto quer dizer que essa impermanência ensina a finitude. Na minha opinião o poema "Ocaso", de Bernadéte Schatz Costa envasa não só, experiências e percepções pessoais, como também traduz de forma lógica (às vezes ilógica – e porque, não?) a grandiosidade filosófica do Mundo em que vivemos. São esses tipos de liberdades poéticas que acabam por me deixar emocionado e cada vez mais consciente do que aprendi com Manoel de Barros: "Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas - é de poesia que estão falando".
Destarte, parabéns, cara poeta. Fiquei muito feliz em conhecer, apenas, um grão de sua pérola lírica, imagina quando conhecer mais e mais, em próximas oportunidades. Vale-me antecipadamente confessar que admiro o talento construído com a riqueza da leitura e da pesquisa, misturadas a sensibilidade interior. Por essa razão, fico com Anne-Louise-Germaine Necker (1766 - 1817), mais conhecida como Madame de Staël, crítica literária, filósofa política e escritora francesa do iluminismo, que ensinou: “A escrita com a sensibilidade e a imaginação conservam a mocidade imortal da alma”.
Mhario Lincoln, presidente da Academia Poética Brasileira.
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O POEMA
OCASO
No fundo dos sonhos,
fecho os olhos
para descansá-los.
No piscar,
água-benta.
Sopro
que rumoreja na face.
Enternece
em avencas secas,
quando o fogo dos sonhos
entardece.
(Bernadéte Schatz Costa – do livro Vácuo Quântico).