*Equipe de pesquisadores e bilbiotecários do FACETUBES.
O livro “A Cidade das Mulheres”, para quem quer ler, vai imediatamente ganhar a sensação de abrir uma janela para uma época que, de tão distante, deveria nos parecer estranho, mas, curiosamente, não tão assim. Concluído em 1405 pela escritora francesa Christine de Pizan, esse livro, agora finalmente disponível no Brasil pela Editora 34, é capaz de ecoar com surpreendente vivacidade nos debates atuais sobre o papel das mulheres na sociedade.
Trata-se de uma obra que, ao contestar a visão misógina dominante entre intelectuais da Idade Média, ergue, no plano simbólico, uma verdadeira cidade feminina — uma fortaleza de ideias na qual não faltam exemplos históricos e lendários de figuras admiráveis que tantas vezes foram ignoradas ou deformadas pelos cronistas do passado.
Christine de Pisan, nascida por volta de 1364, vivia em um contexto em que a educação feminina não era valorizada. No entanto, o seu pai, Tommaso di Benvenuto da Pizzano, membro da corte do rei Carlos V da França, garantiu-lhe o acesso a uma formação incomum para mulheres da sua época. Esse privilégio a tornou não apenas um leitora insaciável, mas uma voz crítica e articulada.
Em “A Cidade das Mulheres”, ela dialoga com escritores que classificavam o gênero feminino como intrinsecamente pecador, pouco inteligente ou moralmente fraco. Mas ao lê-los, ela dá um toque pessoal a essas teses, descrevendo um grupo de mulheres fortes, sábias, governantes, filósofas, santas e guerreiras que, ao serem reunidas num mesmo espaço simbólico, formam um argumento contundente contra a misoginia.
Vale dizer que a força do texto não se limita ao seu valor histórico. Embora escrito há mais de seis séculos, há algo de intimamente contemporâneo em suas páginas. Ainda hoje, certas ideias ultrapassadas persistem, seja em discursos abertamente hostis, seja em comentários sutis que desvalorizam a voz, a capacidade ou a autonomia das mulheres.
Desta forma, esse diálogo com o presente, aliás, não passou despercebido por acadêmicos e pesquisadores. Rosalind Brown-Grant, em seu estudo “Christine de Pizan and the Moral Defense of Women” (Cambridge University Press, 1999), sublinha a riqueza do projeto intelectual da autora ao defender o valor moral e intelectual feminino. Outro exemplo pode ser encontrado em trabalhos organizados por Charity Cannon Willard, uma das grandes especialistas de Christine de Pizan, que reúne seus escritos e oferece análises sobre o contexto medieval em que foram produzidos. Esses estudos mostram que a semente daquilo que hoje chamamos o pensamento feminista já germinava nos salões da corte francesa do século XV, florescendo nas mãos dessa escritora visionária.
Ao retomar a leitura de “A Cidade das Mulheres” em pleno século XXI, o leitor brasileiro pode sentir um tipo de estranhamento: como é possível que palavras de um tempo tão remoto ainda sejam tão familiares? A resposta talvez resida no fato de que a história das mulheres, há muito tempo, vem sendo contada não por elas mesmas, mas por aquelas que, voluntária ou involuntariamente, fortaleceram as posições de gênero.
Destarte, o resgate da obra de Christine de Pizan — o reconhecimento de seu pioneirismo intelectual, o cuidado na tradução, a atenção ao contexto histórico — permite enxergar as raízes profundas dos debates que atravessamos até hoje. Sua cidade utópica de mulheres, erguida sobre bases racionais, éticas e espirituais, segue de pé, convidando-nos a refletir sobre o lugar que a mulher ocupa — e, sobretudo, sobre o lugar que merece ocupar — não só na história, mas no presente e no futuro da humanidade.
(Este texto não tem fins lucrativos)