*Mhario Lincoln
Conheci Ahtange Ferrei quando li alguns de seus memoráveis romances. Fiz resenhas sobre eles. Porém, um deles me impactou tanto que decorei algumas falas e passagens dessa obra. Aliás, vivi fervorosamente um amor muito parecido (exceto pela violência ou ódio) como o que está no livro -"Marcas Indeléveis - É Possível Recomeçar". Sim essa paixão louca também me levou por "caminhos, veredas, canções e emoções errantes, inimagináveis, incompreensíveis aos olhos dos loucos que não conhecem a lucidez da loucura de amar...", como descreve a resenha, publicada na página da Amazon.
Pois bem! E por que estou falando do livro? Porque Ahtange transborda a mesma angústia na prosa poética que ora analiso e se intitula "E Assim...". De certa forma, é uma voz lírica que evolui do sentido mais dinâmico da prosa vertiginosa e se desdobra em fragmentos, numa tentativa de manter a própria existência à tona diante do abismo da ausência.
Seria então um continuísmo de sua prosa, a sua construção poética?
Sim. Porque grandes escritores, como Ahtange costumam transformar prosa em poesia. Detalhe: não são todos. Só os bons como, por exemplo, Clarice Lispector! Embora seu gênero principal tenha sido uma narrativa em romances e contos, a sua ‘primordial linguagem’ ultrapassou os limites e com uma intensidade introspectiva, jogos de imagens e a musicalidade interna de seus textos, acabou construindo performances líricas incomensuráveis.
Para você ter uma ideia do tamanho dessa escritora - é improvável ter limites entre prosa/verso pela dimensão de seus versos latentes - vou assumir a responsabilidade de colocá-la na mesma estante de João Guimarães Rosa, onde é claríssimo, em "Grande Sertão: Veredas", a estrutura frasal, o ritmo, o uso inventivo de palavras e a ambiência mítica, tudo isso, criando um efeito poético profundo.
Aliás, chamo para a mesma mesa o crítico Antonio Candido, que escreveu o seguinte sobre a obra de Rosa: "ele traz a invenção de um universo verbal que aproxima o romance da poesia" (Fonte: CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Itatiaia, 1975).
Desta forma, - e sem aquele péssimo defeito da síndrome do vira-lata, inventado por Nelson Rodrigues - é impossível não detectar nuances muito perto de Lispector ou Rosa quando li, este poema abaixo, que ora analiso:
“se derramar intimamente em forma de letras / no papel borrado da minha saudade”,
Claro que esses versos traduzem uma experiência que não se limita à mera lembrança, mas que consome a autora (com sua liberdade poética) e o leitor - em meu caso - por inteiro, infiltrando-se no íntimo e corrompendo os alicerces da identidade. Há aqui, sem nenhuma dúvida comparativa, uma ferida que sangra silenciosamente: cada vírgula é uma tentativa hesitante de ajuda e cada pausa carrega o peso do que já não se pode tocar.
Ora, por outro lado, sou obrigado igualmente a dar ênfase à 'própria dor' de Ahtange. Os versos parecem experimentar uma espécie de metamorfose inversa: não se completa, mas são reduzidos o estado de torpor e as sensações indizíveis que emergem de profundezas insondáveis.
Esse esforço desesperado lembra o gesto de alguém que, "ao cair num mar da perda, agarra-se a retalhos de linguagem como tábuas de salvação", essa citação, na verdade, é uma interpretação pessoal minha da lógica que faço de Clarice Lispector, quando, em entrevista concedida à TV Cultura em 1977 (disponível no acervo da Fundação Padre Anchieta), ela disse: “Escrevo para me salvar”. Ou seja, escritora enxergava nas palavras uma força de sustentação diante do abismo da existência, o que conceitualmente se aproximava da metáfora de minha interpretação “agarrar-se a retalhos de linguagem”, para não afundar na perda.
A prosa-poética é longa. Mas finquei-me nos versos anteriores e nestes, abaixo, a fim de sintetizar o pensamento dessa escritora e poeta, cada dia mais aplaudida no cenário nacional. Veja:
“Eu sou apenas uma nota... Num rabisco fragmentado, / no canto esquecido” (...)".
Aqui, a poeta (liricamente, claro), se reduz a um símbolo mínimo, uma nota musical isolada e sem harmonia, um som perdido no espaço. A metade que falta, a incompletude do ser sem o outro, recorda o sofrimento romântico de quem, como Álvares de Azevedo, pressentia a “metade” ausente e, em seus poemas da “Lira dos Vinte Anos” (1853), expunha o desconcerto de existir sem o correspondente amado (Fonte: ÁLVARES DE AZEVEDO, Manuel. Lira dos Vinte Anos).
Aqui, repito, Ahtange Ferreira remete, consciente ou não, a esse espelho clássico da poética romântica brasileira: a mesma solidão profunda, a mesma atmosfera de incompreensão e destino imposto, a mesma tentativa inútil de nomear o indizível. E ter o amor de volta, com perdão e compreensão. Assim, como no livro "A Mensageira das Violetas", onde Florbela Espanca, assim escreve: "Que só, de ti, me venha mágoa e dor. O que me importa, a mim?!/ O que quiseres./ É sempre um sonho bom!/ Seja o que for/ Bendito sejas tu por mo dizeres!".
Volta a dizer: é inevitável diante de tudo isso, não beber na fonte preciosa dos ensinamentos filosóficos e, assim, penetrar bem fundo na consciência do texto. Posso afirmar, data vênia, que a poeta se dispersa – nesses versos a mim enviados - em um vácuo ontológico, revelando a profunda fragilidade do ser — um ser que, sem o outro, adoece na incompletude.
Óbvio que também busquei Jung, pois li e senti vi nos resquícios poéticos de Ahtange, uma angústia devastadora que surge diante do rasgo deixado pela ausência. Isso fê-la desembocar na ansiedade de quem não encontra o lugar para relatar a própria essência.
Destarte, versos complexos, catárticos, cheios de melancolia, insistentes em não se dissiparem, mas que se configuram como únicos testemunhos de uma alma que busca, sem sucesso, colar os pedacinhos da alma destroçada pelo amor perdido.
Parabéns, Ahtange Ferreira. Obrigado por compartilhar comigo suas produções em prosa e verso, comigo.
Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.
O POEMA
E assim...
Ao me derramar intimamente em forma de letras
no papel borrado da minha saudade,
tentando me reconstruir em cada vírgula,
para no abismo da tua ausência não sucumbir...
Sinto-me como num estado de torpor, uma sensação tal qual
eunão sei explicar, apenas sinto um vazio
e uma inquietação no intimo, vindo de uma
série de eventos derradeiros, causando-me angústia
e fraqueza no Espírito.
Como nos deixamos levar por intrigas
e sentimentos contraditórios, meu coração sente
no fundo uma certeza, então os olhos
influenciados pela aparência perturba
todo meu ser com duvidas e incertezas...
Incertezas que se alojam na alma,
palavras ao vento, sentimento inconstante,
inconciso, maldito em mim,
nas entranhas sedimentado, latente....
Ah... Quisera eu fugir para qualquer lugar...
Onde pudesse tão somente me encontrar
no aconchego do teu peito e descansar na
paz e calor do teu corpo...
E qual não é meu desespero, esse lugar não existe mais !!!!
Deus!!! Ai de mim e fugir já não posso.
Lutar já não tenho forças...
Já não sei ser metade, você era meu todo.
Um todo perdido no vazio pelo destino imposto
mas inaceitável em mim sem ti.
Eu sou apenas uma nota... Num rabisco fragmentado,
no canto esquecido.
Eu já não sei ser metade a tua metade era meu todo.
Meus dias são frios...
E a cada novo amanhecer, só encontro ao meu lado
a saudade fria a envolver meu
ser e não me deixa esquecer que já não tenho você...
Ainda sinto tua presença tão viva em mim...
O que fazer se nossa canção agora
machuca meu coração... E eu sou apenas uma nota...
Num rabisco fragmentado, no canto esquecido.
Eu queria... O aconchego dos teus braços...
Os sussurros dos teus lábios ou meu ouvido
enquanto me amavas... E em mim se fazia morada...
Hoje sou apenas saudade derramada no vazio...
Que se fez em mim sem ti.