Dra. Flora Guilhonm (*).
(trad livre: Mhario Lincoln).
A convergência simbólica do Natal e do Ano-Novo, tradicionalmente associada à fraternidade e ao otimismo, desperta em muitas pessoas sentimentos de alegria e pertencimento. Entretanto, existe um grupo específico que experimenta uma aversão intensa nesses períodos, o que pode variar desde um desconforto moderado até quadros mais graves de ansiedade ou depressão.
Sob uma perspectiva psicológica, estudos em torno do chamado “Holiday Blues” (American Psychological Association, 2019) apontam que pressões, expectativas excessivas e lembranças sociais dolorosas são fatores que trazem para esse aspecto. Esse estado não é oficialmente categorizado como transtorno no DSM-5, mas a psiquiatria regula que condições pré-existentes de depressão ou ansiedade podem se agravar durante as celebrações (American Psychiatric Association, 2013).
A psicóloga Marsha Linehan (1993) chama atenção para a influência dos pensamentos automáticos negativos nessa fase, uma vez que um encontro familiar e a troca de presentes podem ativar memórias ou conflitos reprimidos.
Elementos relacionados ao inconsciente e à memória afetiva foram explorados por Freud, que, inspirados como dados específicos, podem reavivar conteúdos emocionais de maneira intensa (Freud, 1917).
Por esse prisma, a ritualização festiva e os encontros familiares, longe de promover apenas afeto, podem expor feridas psíquicas ainda não elaboradas. Isso soma-se ao deslocamento emocional de indivíduos que, por motivo de perda, luto ou ressentimento, enfrentam certa resistência em participar de eventos que exigem celebração coletiva.
A perspectiva filosófica também auxilia na compreensão dessa aversão. Pensadores como Theodor W. Adorno já enfatizaram a transformação de Natal em uma “festa comercial”, indicando que a sociedade de consumo instrumentaliza dados comemorativos, reduzindo-as à mera troca de mercadorias (Adorno, 2002).
Nesse sentido, recusar a celebração pode ser entendido como um ato de protesto contra essa mercantilização dos afetos. Martin Heidegger (1927), por sua vez, chamou a atenção para a angústia existencial, que fazem refletir sobre o tempo decorrido e as incertezas do futuro. Essa reflexão pode acentuar a melancolia, tornando insuportável a atmosfera de “obrigação festiva”.
Sob a ótica sociológica, Émile Durkheim (1912) propôs que momentos de celebração coletiva reforçam o sentimento de pertencimento à comunidade, mas, paradoxalmente, podem acentuar a sensação de exclusão ou inadequação em quem não compartilha do mesmo ânimo.
O desconforto, portanto, pode não ser apenas individual, mas consequência do que Durkheim classificou “como um choque entre a coesão social desejada e a realidade de cada sujeito”. Os estudos antropológicos de Claude Lévi-Strauss (1952) mostram, ainda, a complexidade dos ritos festivos, que tanto unem quanto tensionam as relações familiares, sobretudo quando há divergências de valores entre diferentes gerações.
Às vezes, a recusa em participar do Natal e do Ano Novo é uma forma de questionar — ou até romper com — convenções e tradições que já não fazem sentido para o indivíduo.
Alguns educadores e psicoterapeutas sugerem que a compreensão e a superação dessa versão podem ser iniciadas a partir de diálogos abertos e francos, em que as dores e frustrações são validadas e acolhidas. Discussões em grupo, leituras orientadas e momentos de autorreflexão surgem como recursos para ressignificar o período festivo.
O psicoterapeuta Dr. John D. Moore (2010) aponta que a melancolia no final do ano nem sempre é conforto pessoal, pois reflete a própria tensão social que obriga à felicidade compulsória, muitas vezes ignorando conflitos internos. Já a psiquiatra Sandra L. Bloom (1997) acredita que questionar as celebrações natalinas pode se tornar um ato de resistência filosófica, uma vez que se opõe ao consumismo e à idealização equivocada da comunhão familiar.
No que diz respeito às possibilidades de superação, ou pelo menos de redução do sofrimento, torna-se relevante considerar que a versão às festas de Natal e de Ano Novo não representa, necessariamente, um fracasso pessoal ou uma “incapacidade de ser feliz”, mas pode estar vinculada a processos internos e coletivos que merecem atenção. Quando há acolhimento e compreensão, muitos encontram caminhos para transformar o desconforto em oportunidade de crescimento.
Ao final das contas, enfrentar a aversão às festas não implica adesão de maneira acrítica ao espírito festivo, mas, sim, buscar significado genuíno — um movimento que, se bem transitório, pode converter o desconforto em potencial transformação pessoal e coletiva.
A discussão sobre a versão ao Natal pode ser encontrada em algumas obras que analisamos, sob diferentes perspectivas, como dificuldades e problemas associados ao período natalino. Duas referências interessantes são:
1 - Flynn, Tom (2006). (O problema do Natal). Amherst, NY: Prometheus Books.
Obra de crítica clássica à celebração natalina, apresenta uma análise aprofundada dos motivos pelas quais pessoas se sentem desconfortáveis com os rituais associados ao Natal. O autor, militante e diretor do Council for Secular Humanism, aborda o tema principalmente sob a ótica do secularismo, questionando as imposições sociais, os aspectos comerciais e a pressão cultural em torno dos dados.
2 - Waldfogel, Joel (2009). Scroogenômica: (Por que você não deve comprar presentes para as festas de fim de ano). Princeton, NJ: Princeton University Press.
Embora centrado na questão econômica, este livro levanta questionamentos importantes sobre o consumo exacerbado em Natal e como ele pode gerar insatisfação e desconforto. Waldfogel, professor de Economia, explora a ideia de que grande parte das trocas de presentes é financeiramente ineficiente e emocionalmente desgastante. A crítica ao desperdício de material costuma dialogar com quem vivência aversão às festividades, pois revela contradições entre o ideal de confraternização e a realidade de consumo compulsório.
------------------------------
Referências
Associação Americana de Psicologia. (2019). Centro de recursos de estresse de férias. APA. Disponível em: https ://www .apa .org /topics /stress /holiday/ American Psychiatric Association. (2013). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (5ª ed.). Washington, DC: APA./ Linehan, M. M. (1993). Tratamento Cognitivo-Comportamental do Transtorno de Personalidade Borderline. Nova York, NY: Guilford Press./ Freud, S. (1917). Luto e melancolia. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud./ Adorno, TW (2002). A Indústria Cultural: O Iluminismo Como Mistificação das Massas. In Horkheimer, M., & Adorno, TW, Dialética do Esclarecimento. São Paulo: Editora Graal./ Heidegger, M. (1927). Ser e Tempo. São Paulo: Editora Vozes (tradução brasileira, 2012)./ Durkheim, É. (1912). As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes (tradução brasileira, 2003)./ Lévi-Strauss, C. (1952). Raça e História. Paris: UNESCO./ Moore, JD (2010). Confundindo Amor com Obsessão. Chicago: Pub Oeste./ Flor, SL (1997). Criando Santuário: Rumo à Evolução de Sociedades Sãos. Nova York: Routledge./ Instituto Nacional de Saúde Mental. (2020). Abordagens da mente e do corpo para estresse e ansiedade. Disponível em : https://www.nimh.nih.gov
-----------------------------