*Mhario Lincoln
Outro dia li em algum lugar uma frase que dizia mais ou menos assim: “(...) a poesia navega em um hiato entre a sobriedade e a insanidade”. Achei surpreendente por saber que a poesia é algo que ‘pode ser criada’ num vácuo de delírio, como num convite pessoal e intransferível para reflexão direta sobre a natureza ambígua e paradoxal, entre duas forças em tensão: de um lado, a necessidade de lucidez, estrutura e técnica; por outro lado, a urgência de extravasar os limites do racional, mergulhando em regiões próximas àquilo que chamaríamos de loucura ou delírio criativo.
Para entender melhor (essa minha loucura), chamo para a mesma mesa Michel Foucault, porque ele costuma ensinar que a loucura não é simplesmente “um estado natural da mente”, nem algo que possa ser compreendido como uma “verdade universal”. Mas, segundo ele mesmo, a loucura “se constitui historicamente como o ‘outro da razão’, ou seja, como aquilo que cada época, ao definir o que é normal ou racional, designa como seu oposto necessário”.
Em sua obra “História da Loucura”, por exemplo, Foucault mostra como, do Renascimento em diante, as sociedades europeias passaram a delimitar quem era ou não “louco”, com base em práticas de exclusão, confinamento e medicalização — um processo que revela muito mais sobre a organização social, do que a verdadeira análise psicossomática da insanidade.
Bom, e quanto ao “poeta”, propriamente dito? Aí tive que ir buscar um caso emblemático no período do Renascimento. Trata-se do poeta italiano Torquato Tasso, autor de obras como Gerusalemme liberata (A Jerusalém Libertada).
“Ó Musa,
você que não cerca sua testa
com louros perecíveis em Helicon,
mas no céu entre os coros abençoados
você tem uma coroa dourada
de estrelas imortais,
você respira ardores celestiais
em meu peito, você ilumina minha canção,
e você perdoa para mim,
decorações para a verdade,
elas são parcialmente adornadas
com outras delícias além de seus cartões. (...)”.
Embora a obra tenha trazido grande surpresa, Tasso passou por episódios de instabilidade emocional e crises de paranoia, a ponto de, em 1579, ter sido internado por ordem do duque de Ferrara no Hospital de Santa Anna, onde permaneceu por cerca de sete anos. O detalhe é que o tratamento que ele recebeu naquele período — em uma época em que as fronteiras entre “loucura” e “melancolia” não estavam claramente definidas — refletia tanto a incompreensão de seus comportamentos e obsessões, quanto a dificuldade da sociedade renascentista em lidar com questões de ordem psíquica. (Era bem difícil).
Claro que outros tipos de loucura, como psicodelicamente, “a loucura poética” também foram anotados pelo crítico Haroldo de Campos, um dos principais nomes da poesia concreta brasileira e responsável pela primeira tradução completa de “Finnegans Wake” de James Joyce para o português.
Dentro desse contexto, Haroldo fez uma lista onde podem ser lidos nomes de poetas brasileiros que fugiram às normas da estética e foram moldar seus processos criativos bem longe dos parâmetros usados na época, por exemplo:
Sousândrade, pela escrita visionária e pelas inovações formais de O Guesa, que anteciparam práticas modernistas e, na época, foram tidas como signos de delírio ou desvario;
Cruz e Sousa, cujo Simbolismo marcado por sinestesias, repetições e misticismo foi muitas vezes visto como “excessivo” ou “excêntrico” para um país ainda preso a convenções parnasianas; e
Augusto dos Anjos, esses temas sombrios — morte, putrefação, angústia existencial — e linguagem pseudocientífica, chocaram a crítica de seu tempo, rendendo-lhe fama de poeta lunático”.
Diante disso, é impossível não trazer para a mesa sob análise, no Brasil, um dos casos mais marcantes de alguém reconhecida como ‘poeta’ e que passou grande parte da vida em instituições psiquiátricas: trata-se de Stela do Patrocínio, cuja alcunha era “poeta post-mortem”, porque ela só realmente foi reconhecida postumamente, tendo passado mais de três décadas ‘aprisionada’ em hospitais psiquiátricos no Rio de Janeiro, por laudo médico que lhe imputava o transtorno mental, à época, chamado genericamente de esquizofrenia.
Apesar de nunca ter escrito seus versos de próprio punho (porque não lhes deram a forma de “poema” no papel), Stela falava incessantemente, produzindo versos melódicos marcados por imagens visionárias e associações inusitadas. Esses falatórios foram gravados nos anos 1980 por membros de oficinas de criação artística dentro dos manicômios, e transcritos depois em forma de texto.
Então, em 2001, parte desse material foi publicada em livro, intitulado Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, organizado por Viviane Mosé. A obra conquistou leitores e estudiosos especializados em produções “marginais” ou “outsiders”, e Stela passou a ser vista como uma poeta singular, que traduzia sua experiência de mundo por meio de fluxos verbais intensos e desconcertantes.
Com base nesses exemplos, o que, realmente, se pode chamar de “normal”? Seria menos uma condição objetiva, do que o resultado de normas e discursos que governam o comportamento e o pensamento, em determinados momentos da vida social do Planeta? Seriam os discursos líricos — religiosos, médicos, jurídicos, psicológicos — explicitamente fora de uma rede neural do ‘saber-poder’? Ou qualquer manifestação que se afaste do modelo dominante, e que acabam por transformar essa escapulida dos trilhos do ‘politicamente correto’ em “loucura” ou “delírio”?
Para Foucault, (ele volta para a mesma mesa), não existe uma definição pura e simples, absoluta ou imutável, para a normalidade, enquanto arte, pois a própria noção de “sanidade” ou “demência”, varia historicamente de acordo com o regime de verdade de cada sociedade. É assim que, em certos contextos, seguir normas e dogmas passa a ser sinônimo de ‘saúde mental’, enquanto se opor ou destruir essas convenções, risco de ser tachado de “poeta louco”.
Mas não só Foucault, nem Erasmo de Roterdã, nem mesmo ‘o louco’ das revistinhas de quadrinhos de Maurício de Souza, conseguem realmente definir o estado do ser humano em produzir um verso fora dos conceitos e preconceitos da lide consumista, frágil e delével. Aliás, Platão, (como eu gosto de filosofia), em seu diálogo Íon, menciona a “mania” ou possessão divina que acomete o poeta, levando-o a criar “em um estado de arrebatamento que transcende a razão”. Conseguiu enxergar a profundidade disso?
Friedrich Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, aprofunda essa reflexão ao propor dois princípios fundamentais para a arte: o apolineo, ligado à ordem e equilíbrio; e o dionisíaco, voltado ao caos, à embriaguez e à energia irracional. A criação poética, segundo ele, está sob esse olhar, isto é, se revela na soma dessas duas forças, mesmo dentro da tensão permanente entre o controle consciente e o arrebatamento extático.
Diante disso, fui ainda mais fundo para conseguir entender o ‘sentimento louco’ dos românticos ingleses Coleridge e Wordsworth. Interessante como eles falavam “da imaginação como um poder transformador que, por vezes, tangencia o delírio”. Ora, e o que dizer de TS Eliot? A sua ‘pena’, no meu bestunto, nunca excluiu a influência de forças inconscientes.
E o que dizer de Fernando Pessoa, especialmente por meio de seus heterônimos, onde cada “eu” literário experimenta “a criação a partir de ângulos diversos, oscilando entre o rigor do pensamento e a vertigem interior”? Desta forma, Pessoa revela, o seu próprio “desassossego”, incessante, incompreendido, irrefutável, muitas vezes, no qual a consciência clara do “fingimento poético” convive com uma dor ou inquietação mais profunda, que transcende o propósito pensamento lírico, apenas, lírico.
Baudelaire, por sua vez, transforma o mal-estar existencial em versos de extrema sensibilidade, colocando em jogo uma espécie de “loucura” ou desvio que se manifesta na alquimia poética dos sentimentos sombrios.
Ora, se eu tentar sintetizar aqui um parâmetro entre “Poesia e Loucura”, não haverá folhas suficientes. Porém, em alguns versos, posso dizer que eu sempre caminhei trêmulo entre muros e ecos; de um lado sob a lâmina fria da razão, do outro, sob o labirinto pulsante do sonho. E lá vou eu, sem bússola, fio de navalha na alma, e a palavra em chamas nas mãos.
Por isso, acho que aquela velha frase que li e citei no começo deste texto, - “a poesia navega em um hiato entre a sobriedade e a insanidade” – pode ter lógica.
*Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira e editor-sênior da Plataforma Nacional do Facetubes.