APOSENTADORIA É UM TÉDIO?...
*Mhario Lincoln
Com setenta e um anos, a fazer daqui 1 mês, com alguns problemas de saúde, então posso confirmar a minha aposentadoria, em definitivo? Fica bem difícil afirmar isso. Eu não me imagino aposentado, de pijamas, numa poltrona na sala, lendo revistas ou vendo TV ou, ainda, me trancando em minha sala de estudo para passar o dia lendo obras clássicas. Não! Não me imagino assim.
Desta forma, quando reflito sobre o termo "aposentadoria" - Dia 24/01 é comemorado o Dia do Aposentado, no Brasil - eu costumo pensar também no temor da estagnação de minha própria esperança de continuar vivo. (Hummm. Bem radical). Mas é assim mesmo porque aposentadoria, no meu caso específico, não falo no coletivo, de meu trabalho diário me levaria fatalmente à letargia insólita. No meu caso específico seria uma ruptura insana de um ritmo interior construído ao longo de décadas.
Esse rompimento a mim me desencadearia, sem dúvida, angústias diversas. Isso porque, para quem pensa diariamente, 24 horas, criando, escrevendo, buscando incentivo - em um fluxo intenso de produção — subitamente sem mais a necessidade de produzir, acho que tudo viraria um grande vazio existencial.
Eu tenho muito medo de um dia ficar impossibilitado de produzir, de criar. Sempre achei que existe, lá no fundo, uma confluência entre a dimensão prática (o corpo que desenvolveu “descansa”) e a dimensão psíquica (a mente que, raras vezes, se aquieta), criando um paradoxo: enquanto o organismo atinge a maturidade, a pulsão criativa permanece viva e jovem, muitas vezes em franca dissonância com as imposições do calendário biológico ou social.
Claro que fui pesquisar para saber quem pensava igual (ou não) a mim. E nessa pesquisa descobri coisas interessantes. Por exemplo, me lembrei do nosso conterrâneo Ferreira Gullar, ativo na poesia e na crônica jornalística até a morte. Por várias vezes, em entrevistas, ele afirmava sua recusa à ideia de abandonar as letras em virtude das convenções etárias.
O brilhante Mário Quintana, poeta gaúcho, disse publicamente: "o escritor não se aposenta — ele escreve até o último suspiro, pois sua arte não conhece fronteiras cronológicas". Genial, não é mesmo? Assim, em ambos os casos, a criação literária surge como um fluxo incessante de descoberta e reinvenção, onde a verdadeira renovação interior deixaria o espírito criativo mais vivo do que nunca. Por isso costumo ‘dizer-me’: reinvente-se, Mhario, encontre outra saída; não pare!
Mas existe quem tenha anunciado, em dado momento, a publicação do seu “último livro”, seja por cansaço, seja por sentir que o ciclo de criação estava encerrado. Philip Roth declarou que “Nemesis” (2010) marcaria o fim de sua produção literária, posição que manteve até sua morte. A canadense Alice Munro, Nobel de Literatura em 2013, também chegou a anunciar, após "Dear Life" (2012), que se retiraria da escrita, embora seja ainda um nome vivo e celebrado.
Nesse tipo de anúncio, transparece tanto o exame emocional quanto a nítida percepção de que a obra já atingiu o ápice ou completou o percurso que o autor julgou necessário. (É engraçado como, no meu caso específico, acho que sempre poderei fazer algo melhor).
E no plano mental? Já parei para pensar se esse acumulo de funções e insistência em continuar produzindo não seria uma questão mental. Tenho minha opinião acerca: essa imposição de aposentadoria - com intenso vigor produtivo – vai gerar em mim um sentimento de inutilidade. O que me levará fatalmente a uma grande depressão. Psicologicamente, a aposentadoria seria o ‘gatilho’ da depressão e de uma outra consequência pior: o rompimento abrupto da rotina de minha criação e de meu estudo diário.
A minha psique, sempre acostumada a um regime de constante elaboração de ideias, sofreria muito ao se ver restringida a um ócio não solicitado. Eu tenho certeza de que mente ativa (muitos estão nessa fase) continua a exigir novos estímulos. Essa é a razão direta de alguns escritores - segundo minhas pesquisas – mesmo tendo anunciado suas aposentadorias, decidiram voltar literalmente aos seus ofícios, incitados pela própria força criativa.
O romancista Stephen King chegou a declarar em algumas entrevistas, no início dos anos 2000, que cogitava consolidar sua carreira. Contudo, novas histórias e ideias o levaram a publicar muitos outros livros, mostrando que, para certos autores, o ímpeto da escrita não cessa apenas por decreto pessoal.
Tal fato sublinha a natureza quase compulsiva do processo criativo: a palavra final, ao que parece, não depende de calendários, mas da vitalidade interior que insiste em se manifestar. Por essa razão, muitos autores chegam a publicar algumas de suas obras mais importantes já em idade avançada, (eu ainda espero obter essa chance, também), quando a atualização artística se alia a uma ampla experiência de vida.
Desta forma acredito, partindo de mim mesmo, que a lógica da criação literária transcende as limitações impostas pela idade, pois a poesia e a prosa não necessitam, necessariamente, de um esforço físico extenuante, mas, sobretudo, de estar acesa - fulgurante - chama interior que persiste em expressar o íntimo humano.
*Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.