*Mhario Lincoln
Aldira Martins me foi apresentada por Pedro Sampaio. Ela foi uma das organizadoras da festa memorável em Aquiraz, (Patacas), sítio à beira-mar do radialista amigo Jones Cavalcante. Lá ao som de vários sanfoneiros, zabumbas e triângulos, acordei com o “Parabéns a Você”, cuja sonoridade existencial e só minha, nordestino que sou, nunca dantes experimentada.
Nos dois dias que passamos juntos, aprendi a gostar imensamente de Aldira. Ouvi dela cordéis, poemas e sonetos. Música com letras dela mesma. E agora, eis que recebo na minha caixa de mensagens, um poema tão forte que me deixou com muita vontade de descobrir o que aconteceu, antes dela colocar no papel, tão significativa criação lírica.
Sem amiúdes, eis aqui o poema “É Fato”, cuja primeira revelação, a mim feita, foi de uma sensível e profunda reflexão sobre suas dores, seus desafios e suas esperanças. O velho provérbio popular - “fazer o bem sem olhar a quem” - possivelmente nascido da interpretação bíblica, em Gálatas 6:10, parece não ser totalmente absorvida por pessoas más por natureza. Enquanto tem pessoas fazendo o bem, outras, crucificam quem o faz, (como Aldira), como os chicotes da dureza do mundo.
Isso me veio por insight, quando li a poesia de Aldira em meio a uma construção marcada por imagens simbólicas — como o fermento que estraga o pão, a crucificação da inocência, o baralho espalhado no chão — que metaforizam a perda de uma referência de retidão (“o que era reto / Virou contramão!”), além de sentir uma imensa sensação de abandono.
Geralmente, quando analiso um poeta, busco várias fontes como embasamento lógico. Por exemplo, trazendo para o texto algumas leituras psicanalíticas, a parte em que Aldira afirma ter sido “crucificada na inocência” sugere um evento traumático ou uma sucessão de enganos, em que a pessoa é penalizada exatamente pela pureza ou boa intenção. Aí, torna-se impossível não trazer para a mesma mesa, Carl Jung. Nesse caso, há um processo de individuação como um caminho em que o sujeito se confronta com a sombra — isto é, os aspectos dolorosos e reprimidos de si mesmo ou da sociedade.
Nessa perspectiva, “ser crucificada na inocência” indica as consequências sérias exumadas pelo realismo cru da vida em sociedade, gerando sofrimento emocional. Aldira também menciona elementos que se dispersam (“Calou-se os chocalhos / Foi embora o gado / Cartas de baralho / Se fornecidas no chão!”), transmitindo a sensação, que eu senti, de ruptura de uma ordem pré-estabelecida.
Mas também é interessante ver o trabalho de Aldira Martins do ponto de vista filosófico, porque o poema aborda um tema muito interessante. A tensão entre o ideal e o real, entre a esperança e a desilusão. Ao dizer “o que era reto / Virou contramão!”, Aldira acaba enunciando a inversão de valores (caminhos que antes eram claros). Essa inversão remete à ideia de alienação e crise existencial estudada por filósofos como Jean-Paul Sartre e Albert Camus, (esses caras não me abandonam, sempre presentes em meus textos), para quem a existência humana se depara, muitas vezes, com o absurdo e a falta de sentido. Nessa jornada, quem não carrega a tarefa de reconstruir-se a partir dos escombros das próprias incertezas?
Apesar do tom de desalento, as últimas estrofes resgatam - e isso eu achei sensacional - um fio de esperança ao destacar que “O que é sagrado / Mesmo abandonado / Sem ter atenção! / (...) / Segue bem guardado / No meu coração”. Essa postura sugere uma perspectiva de fé na essência humana, lembrando a reflexão de Hannah Arendt, que acreditava na capacidade renovadora da ação humana e do perdão, mesmo em cenários de desencanto. Em meio a traumas e frustrações, o “sagrado” permanece intocado na subjetividade, como fonte de dignidade e força interior. Esse é o milagre de Aldira, cujo texto, ela não deixou desvirtar para a insanidade.
Aldira Martins, desde meu primeiro contato com ela, sempre demonstrou ser uma mulher muito forte, apesar de alguns desalentos. Então, tive que mergulhar fundo e trazer à tona suas “entranhas poéticas”. E o faço, haja vista o respeito mútuo que conservamos ao longo desse tempo. Porém, interpretar um verso escrito à partir das vísceras líricas que sobrevoam suas próprias dores e sonhos, é necessário que eu tivesse saído do contexto puramente clássico das resenhas ortodoxias porque, em meu caso específico, é bom que eu diga, o que eu faço e gosto de fazer, é entender a poesia como o todo. É buscar seu conteúdo plurissignificativo, subjetivo e ambíguo. Analisar o sentimento da poesia, o que ela esconde em suas entrelinhas. É muito mais prazeroso do que classificá-las em escolas literárias como classicismo; quinhentismo; barroco; arcadismo e outras tecnicidades ou ainda, descrevê-la em rimas e prolixidade.
Desta forma, ao ler a poesia de Aldira posso chegar (livremente) a uma Adélia Prado. Posso comparar seu texto à “Bagagem” e “O Coração Disparado”, onde são reveladas uma escrita profundamente mergulhada nas entranhas femininas, expondo o conflito entre o cotidiano banal e a espiritualidade profunda, algo que ressoa em “É Fato”, quando Aldira fala do sagrado e da inocência.
Escrevendo Resenhas de meu jeito, eu posso falar de Florbela Espanca, que também externalizava suas feridas e anseios, colocando o coração, por vezes oprimido, como centro da criação poética. Não poderia citá-las se estivesse preso a convenções geográficas entre a virgula e o ponto.
Por outro lado, consigo incluir, igualmente, quando possível, o manuseio necessário do aspecto social. (E porque, não, já que a estrutura do poema de Aldira me leva a isso?). Nesses versos curtos e diretos, essa cearense de muito bom gosto lírico, confere um ritmo que sugere urgência e leveza simultâneas. E é aí que entra o social: no encadeamento de imagens - “Insistir num ato / Bater no teclado / Até a exaustão!” – Essa metáfora lembra algo “social” no todo? Ou não? Torna-se evidente:
Não sei se o fermento
Do poder
Com o tempo
Permeou por dentro
E, estragou o pão!
Tão social que esse ruir aparece como denúncia de valores invertidos em um mundo que pouco valoriza a inocência e a candura, preferindo a competitividade e o poder. Esse verso específico é algo muito duro. Algo que exigiu uma superação infinita e atemporal. Porque, mesmo diante desse colapso simbólico, a autora finaliza o poema com uma afirmação de esperança, reforçando a importância de preservar aquilo que é íntimo e sagrado. Esse fato me fez pensar em Erich Fromm. Com ele aprendi que a capacidade de amar e guardar esse amor dentro de si, mesmo em contextos adversos, é um grande sinal de maturidade afetiva a si mesma, além de ser uma resistência pessoal importantíssima, diante dos desequilíbrios do meio social e da vida comum que o poeta leva, fora de seus domínios aedos.
Chego ao fim, após ler “É Fato” e de fato, mais apaixonado pela obra de Aldira Martins, uma mulher simples, enfermeira, amante do Baião e do Forró, repentista, cordelista, poeta, sonetista, letrista, cujo coração a mim me parece absorver o imenso mundo de Madre Tereza de Calcutá, haja vista as centenas de boas ações que ela realiza em prol dos necessitados que dela se aproximam. Voltando ao sítio em Aquiraz (CE) eu assisti o quanto Aldira é importante para a sua comunidade. Foi exatamente lá (ao ouvi-la), que reforcei as minhas reflexões sobre a força interior que nasce da vulnerabilidade.
E agora, após ler esse poema, onde ela expõe as contradições de um mundo que crucifica a inocência e inverte caminhos, ela demonstra a potência de resistir sem mágoas e de manter intacto um bem maior: o “sagrado” que habita o coração.
Parabéns, Aldira Martins. Obrigado por me ensinar mais um pouquinho sobre a vida.
*Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.
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O Poema
É FATO
É fato que é chato
Insistir num ato
Bater no teclado
Até a exaustão!
É, quê
Na inocência
Fui crucificada
E, o quê era reto
Virou contra mão!
Calou-se os chocalhos
Foi embora o gado
Cartas de baralho
Se espalhou no chão!
Não sei se o fermento
Do poder
Com o tempo
Permeou por dentro
E, estragou o pão!
Só sei, quê
O que é sagrado
Mesmo abandonado
Sem ter atenção!
Sem mágoas
Sem força pra nada
Segue bem guardado
No meu coração
Aldira Martins