MEMÓRIAS DOS MARES DO SUL
“Havia perdido as minhas raízes e era realmente um barco ébrio naquele mar de silêncio e indiferença”.
Numa sequência de dias passei a frequentar a casa do poeta Reinoldo Atem, geralmente nos sábados à tarde, para muitas conversas embaladas por vinho, música e poesia.
Ele tinha uma discoteca invejável, rock, MPB, música erudita e eu voltei, aos poucos, ao vício do alcoolismo do qual me julgava curado.
Conheci por essa época um bom camarada de nome Antônio, dono de uma lojinha bem transada, que vendia livros e discos, cuja clientela em sua maioria era formada por lá, comprando semanalmente discos e mais discos, inclusive discos importados, que custavam três vezes mais caros que os discos brasileiros. Eram os famosos longplays ou bolachões, como eram chamados.
Em não muito tempo eu estava com uma discoteca com todos os discos dos principais nomes da MPB: Caetano, Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento, Tom Zé, Sá Guarabira, João Gilberto, Tom Jobim, Edu Lobo, Chico Maranhão, Gal, Bethânia, Elis Regina, Simone, Paulinho da Viola, o pessoal do Ceará, mineiros, paulistas, cariocas, baianos. Só faltou aqui Tonico e Tinoco.
E discos de rock e country, muitos importados, Bob Dylan, o primeiro disco de Bob Marley a chegar no Brasil, o Live, Santana, Gênesis, Pink Floyd, Led Zepelim, Crosby, Still, Nash e Young, Neil Young, Beatles, Rolling Stones, Eric Clapton, John Lennon, Frank Zappa…
E passei para o jazz: Coltrane, , Miles Davis, B.B. King, Chet Baker, Billie Holiday, Nina Simone, Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, Duke Ellington, Charlie Parker, Thelonious Monk, Benny Goodman, Charles Mingus, Ella Fitzgerald…
E os eruditos Bach, Beethoven, Mozar, Wagner, Berlioz, Vivaldi, Chopin, Schubert, Schumann, Brahms, Strauss, Tchaikovsky, Bizet, Dvorak, Stockhausen, Villa-Lobos…
Era no governo Ernesto Geisel, eu estava pouco ligando para o que acontecia no campo político brasileiro, e dividia meu tempo entre o serviço burocrático, sábados à tarde na casa do Reinoldo e em casa bebendo vinho e ouvindo música.
Havia uma solidão amarga, eu não tinha com quem conversar, mesmo no trabalho, apesar de ter dois colegas mais próximos, o Paulo e o Mauro, ninguém frequentava a minha casa nem me convidava para uma visita.
O frio de Curitiba era também o modo de ser dos curitibanos, frios, distantes, ensimesmados. Eu era nordestino cabeça chata, como, às vezes, somos chamados. Não possuía o código de acesso àquela cultura, que era uma mistura de descendentes de italianos, alemães e poloneses, os polacos. Havia perdido as minhas raízes e era realmente um barco ébrio naquele mar de silêncio e indiferença.
Em julho de 1977 nascera meu filho Frederico, e o Reinoldo e sua esposa foram muitos gentis e colaboradores comigo.
Parte do meu salário era gasto com discos, cada vez mais discos, e quando dei por mim estava comprando discos lá com o Antônio na base do cheque pré-datado. Quando chegava o fim do mês o saldo do meu salário era também cada vez menor.
Tentava compensar o tédio, a solidão, a sensação de ser um estrangeiro, bebendo e ouvindo música com a sofreguidão dos desesperados. O oásis no deserto eram as reuniões na casa do meu verdadeiramente único amigo que tive em Curitiba, durante o período em que lá vivi, de fevereiro de 1977 a julho de 1979.
O Reinoldo era um cara de esquerda, avesso aos governos militares e tinha escrito um livro, “1971”, excelente e dramática obra narrando alguns aspectos da prisão e tortura praticadas pelo regime dos generais.
Mas, como cada um puxa brasa para sua sardinha, o governo denunciava, e era verdade, os esquerdistas e comunistas, juntos, estavam praticando atos terroristas, tais como: sequestros, assaltos a bancos, assassinatos. Nem de um lado nem do outro havia anjinhos de asinhas brancas.
Nosso interesse comum, meu e do Reinoldo, era o vinho e a literatura. Foi então que começamos a amadurecer a ideia de lançarmos uma revista de literatura e arte. Um veículo literário radical que refletisse a insatisfação de artistas, poetas e intelectuais com a duração excessiva da assim chamada ditadura militar.
A Revista foi lançada com o nome de Outras Palavras e, entre seus colaboradores, estava o poeta Paulo Leminski. A revista teve vida efêmera, durando apenas até o terceiro número, mas se constituiu num acontecimento cultural importante naquele longínquo ano de 1978, para a vida da, até então, pacata cidade de Curitiba.
Por essa época eu estava cuidando da produção e edição do meu terceiro livro de poesias, cujo título Presença significava a minha reafirmação poética e a minha afirmação como cidadão no mundo. Poemas, em grande parte, carregados de significados que exploravam a situação do poeta diante da máquina e do sistema que não são mais que engrenagens de submissão, escravidão e tortura do ser humano.
(Continua).