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MEMÓRIAS DOS MARES DO SUL (Continuação do Capítulo II - Indo embora)

Texto do poeta e escritor Raimundo Fontenele.

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: Raimundo Fontenele
21/02/2025 às 16h58 Atualizada em 21/02/2025 às 17h15
MEMÓRIAS DOS MARES DO SUL (Continuação do Capítulo II - Indo embora)
Raimundo Fontenele.

 Poeta e escritor Raimundo Fontenele.

 

O problema agora era chegar e conseguir entrar em casa. Eu residia numa casinha de madeira de fundos, coisa muito comum no sul do Brasil. As pessoas constroem uma ou mais residências no terreno de fundo e as alugam, com a finalidade de aumentarem sua renda, ou servem para moradia de filhos ou parentes de qualquer natureza.

A casa que eu morava pertencia a dona Ruth, uma senhora distinta e bondosa, e que era minha chefe imediata no CREA. Isso era um agravante a mais para a entrada triunfal que eu faria pelo portão lateral do seu terreno. E se ela e o marido estivessem acordados e me vissem chegar o que pensariam de mim? E se seu esposo julgasse tratar-se de um ladrão, de um invasor ou mesmo de algum louco de pedra, e me passasse fogo?

Enquanto isso, eu continuava ali. Deviam ser mais de dez horas da noite, e passavam carros de polícia, ambulâncias, táxis, carros particulares, e nada… Ninguém parava, ninguém ouvia os meus já quase berros pedindo socorro.

Até que enfim um táxi parou, eu corri até ele, segurei a maçaneta da porta, quando o motorista falou:

­— Peraí, maluco. O que foi isso? Tu tá vindo das bocas, é?

­— Não, meu irmão, eu fui assaltado agora mesmo, juro… ­— respondi quase às lágrimas, a voz embargada de frio e desespero.

­— Tu mora aonde?

­— No  centro, ali na rua Marechal Deodoro, no  Alto da XV…

­— Tá bom, entra aí.

Entrei todo trêmulo, mas ele não deu a partida imediatamente. Queria saber o acontecido. Contei exatamente o que aconteceu, apenas omitindo a história de que eu tinha ido com o cara para pegar um fuminho. Troquei o fato dizendo que ele ia me levar numa daquelas boates, mas numa específica onde tinha uma gatinha de tirar o fôlego.

Ele deu a partida, o táxi começou a rodar e meu coração aos pinotes, o medo e a vergonha de chegar em casa  daquele jeito, então ouvi o taxista falando:

­— Olha, cara, tu deu sorte por morar no centro. Se fosse num bairro nem eu, nem nenhum colega de táxi te levava não…

Já devia ser mais de onze da noite quando ele parou em frente ao endereço que eu lhe dera, Rua Marechal Deodoro, 1189, no Alto da XV.

Pedi que ele esperasse ali enquanto eu ia pegar o dinheiro para lhe pagar a corrida. Dei sorte porque a rua estava deserta, as casas ao redor já com suas portas e janelas devidamente fechadas. Abri o portão de mansinho, com todo cuidado para não fazer o mínimo barulho. Vesti a calça-pijama e voltei para pagar o taxista e agradecer pela caridade e misericórdia que ele tivera comigo.

Em casa, trancado numa peça que me servia de biblioteca, recostei no sofá e se foi a tensão e a adrenalina e eu caí num pranto silencioso e doentio.

Levei uns três dias pra me recuperar do trauma, no primeiro dia nem comer eu quis. Fiquei trancado, sem fome, sem conseguir dormir direito pensando em como andei perto da morte. Promessas não me fiz, sabia que ia continuar bebendo, arriscando-me, pondo minha vida nas mãos da loucura e da sorte.

Inventei uma doença para justificar minhas faltas no serviço, dona Ruth, minha chefe, deve ter percebido que alguma coisa não estava certa comigo, mas não me cobrou nada, justificou minha ausência de três dias no trabalho e a vida seguiu seu rumo.

Contei o assalto para um ou dois colegas do CREA e, de repente, todos ficaram sabendo do ocorrido. Se você quer guardar um segredo, não conte nem pra si mesmo…

Na sequência desse acontecimento veio outro, pois a má sorte não anda sozinha, tem sempre uma porção de diabinhos em sua companhia e, nem sei porquê, resolvi deixar minha barba crescer.

Sabem o José Leite, aquele que entrou no CREA junto comigo? Na condição de Chefe de Pessoal me chamou no seu gabinete pra dizer que eu devia fazer a barba. Retruquei e perguntei qual o problema, em que isso atrapalhava o funcionamento do  serviço ou o meu rendimento. E ele:

­— Não está afetando o trabalho,  mas o regimento interno proíbe, tens que andar com boa apresentação pessoal.

O regime militar imposto ao país penetrava em quase tudo que era instituição governamental. Todos tinham que dançar conforme a música ou som da batida dos tambores.

­— Olha, Leite, na minha concepção eu estou apresentável. Roupa limpa, banho tomado, a barba também está até perfumada…

­— É, mas não pode nem com barba, nem cabelo crescido, é a norma, cara.

Nem sei se o Dr. Valdir, o diretor geral da administração, estava por trás daquela ordem ou se era coisa da cabeça mesmo do Leite.

­— É o seguinte, Leite, eu não vou tirar minha barba não.

­— Olha, Fontenele, vou te dar uma semana de prazo, se não fizeres a barba aí vou levar lá pra cima.

A sede do CREA, na Rua Padre Camargo, era de dois pavimentos. De forma que quando o Leite falou em “levar lá pra cima”, ele esgueirou-se na cadeira, depois abaixou-se um pouco, a voz quase sumindo, e apontou pra cima com o dedo indicador. Era muito servilismo, eu pensei. Atitude típica de bajuladores.

O assunto vazou, nada fica em segredo, um dia o escondido sempre vem à tona, e aquela semana foi toda de mexericos e disse-me-disse.

Muitos colegas do trabalho vieram hipotecar solidariedade, que eu estava certo, era uma atitude errada quererem obrigar a gente a só fazer o que eles queriam.

Saquei que eu estava encarnando uma desobediência que também estava latente dentro da maioria de meus colegas. Uma espécie de servidão a  normas e regras tão rígidas como se estivéssemos num quartel.

Sentindo o clima, encabecei um baixo-assinado reivindicando mais liberdade, que a gente pudesse ter certas atitudes desde que não prejudicasse o andamento dos trabalhos do CREA, e mais uma penca de lugares comuns, numa linguagem muito próxima daquela usada pelos esquerdistas de modo um tanto hipócrita.

De um total de cinquenta e quatro funcionários eu consegui a adesão e assinatura de uns trinta e oito, todos solidários e aprovando os termos do baixo-assinado. Eu mesmo fui ter com cada um deles para conseguir as assinaturas, e ficou acertado que eu entregaria pessoalmente o documento para o Dr. Valdir, o nosso diretor geral, na sexta-feira próxima.

Pois na quinta-feira à tarde, por volta das quinze horas fui chamado ao gabinete do Dr. Valdir, que me recebeu nervoso e impaciente. E exibiu uma cópia do abaixo-assinado, dizendo que sempre me tratou com uma certa deferência, pois eu era, até aquela data, um ótimo funcionário etc. e tal. Mas aquilo era um desrespeito e uma traição e eu só não era despedido por justa causa porque, felizmente para mim, eu não estava sozinho e eles não podiam demitir mais de trinta servidores de uma só vez.

Quis saber de quem tinha sido a ideia daquele ato de insubordinação, e eu respondi que não tinha nenhum líder, foi uma coisa pensada por todos que assinaram aquela petição. Disse  que achávamos as regras exigentes demais e que o fato de cultivar uma barba não atentava contra a moral, nem contra os bons costumes, e muito menos atrapalhava o nosso rendimento no trabalho.

Arrematei as minhas justificativas falando que muitos homens ilustres usavam barba e citei nominalmente o Barão do Rio Branco e Dom Pedro II. Ele deu um sorrisinho sarcástico e disse que o Barão do Rio Branco usava era um bigodão, mas barba não. Eu disse, mas o Marechal Deodoro da Fonseca usava e, quando nos demos conta, estávamos nomeando quem usava barba entre os tantos homens de bem da nossa República: políticos, poetas, empresários…

Esquecemos, por um momento, o verdadeiro motivo da minha estada em seu gabinete, e ele voltou a ficar sério e me despachou dizendo que se eu aprontasse mais alguma não tinha como ele me segurar no serviço.

E daquele dia em diante a barba foi liberada, passamos a ter até vinte minutos de tolerância em caso de atraso, e outras regrinhas bobas foram abolidas do nosso cotidiano.

E não só isso: passei a ser visto com certa admiração pelos colegas e, por incrível que pareça, fui até promovido.

(CONTINUA NA PRÓXIMA QUINTA-FEIRA)

 

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JaimeHá 3 semanas BSB/DFComo todos os outros artigos, esse acima, muito interessante. Passando por apuros em um assalto e depois teve que lutar onde trabalhava, para abolir algumas normas, que não agregarvam valor algum, no bom desempenho do dia a dia. Lutar por aquilo que acreditamos, é a antesala, para conseguirmos mudar a direção, daquilo, que não está funcionando bem. Monstrando que nunca devemos abdicar, dos nossos ideais.
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