Padre Heitor, exclusivo para a Plataforma do FACETUBES (www.facetubes.com.br).
A Quarta-feira de Cinzas no Brasil marca o fim do período carnavalesco e o início da Quaresma, tempo litúrgico da Igreja Católica que antecede a Páscoa. O contraste entre o Carnaval —associado à festa, à liberação dos impulsos humanos e por vezes a excessos — e a Quaresma, caracterizada por penitência, jejum e reflexão, revela dinâmicas culturais e religiosas ricas em significados históricos, teológicos, psicológicos e filosóficos.
A Quaresma, do latim “quadragésima”, abrange quarenta dias que remetem aos quarenta dias de Jesus no deserto (cf. Mt 4,1-11; Mc 1,12-13; Lc 4,1-13) e enfatiza o chamado à conversão. O Catecismo da Igreja Católica (CIC) ressalta, em especial nos números 540 e 1438, a importância deste período como tempo de oração, jejum e esmola, lembrando a prática cristã de purificação interior em preparação para a Páscoa. Historicamente, já no Concílio de Niceia (325 d.C.) havia menção a uma preparação pascal, e o costume de quarenta dias consolidou-se à medida que se firmou o calendário litúrgico. A Quarta-feira de Cinzas, que inaugura a Quaresma, lembra a transitoriedade da vida humana com a frase “Lembra-te de que és pó e ao pó hás de voltar” (Gn 3,19).
O Carnaval, por outro lado, costuma ser interpretado como o último momento de liberalidade antes de um período de restrição. Muitas hipóteses etimológicas ligam a palavra “Carnaval” a expressões como “carne vale” ou “carne levare”, sugerindo a ideia de despedida dos prazeres da carne antes do tempo penitencial. Embora não seja um convite oficial ao pecado, essa festividade carrega, na cultura popular, a noção de permissividade e extravagância, à qual se segue a Quaresma como contraponto de recolhimento e penitência.
A alternância entre festa e introspecção pode ser observada sob diversas óticas. No âmbito religioso, a Quaresma permite o arrependimento e a busca pelo perdão, com a confissão adquirindo grande importância. Psicologicamente, o Carnaval pode funcionar como catarse coletiva, liberando tensões individuais e sociais; em seguida, o recolhimento quaresmal promove um reequilíbrio emocional e mental por meio de maior reflexão e sobriedade.
Filosoficamente, a tensão entre a exaltação do corpo no Carnaval e a ênfase espiritual da Quaresma ilustra o dualismo corpo-espírito tão presente no pensamento ocidental. Não se trata de uma oposição irreconciliável, mas de dimensões complementares do humano, em que o período festivo e o período penitencial se sucedem e podem até se enriquecer mutuamente.
Além disso, há que se lembrar das reflexões de Aristóteles sobre a virtude como busca do equilíbrio, bem como as de Santo Agostinho a respeito da “ordem do amor” (ordo amoris). Ambas as concepções ajudam a entender por que, depois da explosão de alegria e permissividade, faz sentido haver um tempo de disciplina e moderação. Ao final, o Carnaval e a Quaresma evidenciam a complexidade da condição humana, que oscila entre a celebração dos prazeres terrenos e a aspiração a uma realidade transcendental. Nessa dinâmica cíclica, a tradição cristã vê uma oportunidade de purificação e renovação interior, propondo um caminho equilibrado entre os excessos da carne e a sobriedade do espírito.