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Socorro Guterres, indicada para a próxima vaga da APB, vai a Antártida e conta tudo

“Mas por que devemos nos importar com a Antártida?  Não só a beleza e a grandiosidade que parece nos transcender ao sagrado, ao imaculado, ao perene, mas sobretudo refletir sobre o bom funcionamento dos oceanos, os recursos da natureza, a história dos planetas sustentada nas bases científicas que se assentam nessa porção de  terras recobertas  por blocos de gelo...”

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: SOCORRO GUTERRES
07/03/2025 às 09h39
Socorro Guterres, indicada para a próxima vaga da APB, vai a Antártida e conta tudo
Socorro Guterres (especial) da Antártida

EXPEDIÇÃO ANTÁRTIDA

 *Socorro Guterres, escritora e poeta, indicada para a Academia Poética Brasileira.

 

Um continente praticamente desabitado, sem nenhum governo e que não pertence a nenhum país. Gelado, seco e ventoso, assim o motivo de não ter uma população nativa: Antártida, nome de origem grega que significaria uma posição anti-ártico, ou seja oposta ao Ártico. Uma excursão por mares de icebergs e águas revoltas antecederiam a chegada, cruzando a temível passagem de Drake (onde concentram-se as piores condições metereológicas do mundo) localizada no extremo sul da América do Sul e que deve seu nome ao explorador britânico do século XVl, Francis Drake. Passagem que foi aberta quando a Antártida se separou do continente sul americano, há milhões de anos, permitindo a conexão entre os oceanos Atlântico e Pacífico, por meio da Corrente Circumpolar Antártica. A curiosidade humana impulsionou muitos desbravadores e o fascínio pelo continente gelado os levou aos confins do planeta,  num mergulho ao passado, ao remoto e ao desconhecido.

A saga do explorador polar Ernest Shackleton em suas lendárias expedições à Antártida ou Antártica, foi o impulso inicial para minha odisséia. Naveguei com ele nas páginas que narram seus feitos, apreciei as fotografias surpreendentes da expedição e senti as ondas me levando a este destino, ou próximo dele.

Agendamos a viagem num portentoso e moderno navio, não desmerecendo  o “Endurance”, fabricado com madeirame de carvalho, no qual navegou Shackleton e seus 27  intrépidos tripulantes, em 1914, na Expedição Transantártica Imperial, ficando à deriva,  encalhado por meses em blocos de gelo no mar de Weddell, numa incrível jornada de superação e luta pela sobrevivência. Eu apreciaria inesquecíveis férias, eles desfrutariam de um lugar na história. A memória nos eterniza, ou melhor como disse um pensador "O que a memória ama fica eterno". Em buscas de registros memoráveis, inicio esta viagem.

Embarcamos em Buenos Aires, a capital cosmopolita da Argentina, localizada na costa sudeste da América do Sul. Tivemos um tempo disponível para apreciar a arquitetura clássica dessa bela cidade de influência europeia; desfrutar a culinária excelente de tantas delícias, dentre elas as empanadas, chorizos e medialunas. Além de, é claro, nos enlevarmos ao som característico portenho: o tango, com seus passos de paixão, melancolia e sensualidade.

Enfim, o transatlântico que nos levaria mar adentro, com tecnologia que asseguraria estabilidade mesmo em condições climáticas extremas, além de conforto e equipe pronta a nos proporcionar perfeita hospitalidade. Três dias seguidos de navegação nos levariam a um primeiro porto, na verdade, primeira ancoragem. Três dias de intensa observação marinha, reflexão e contemplação. Desconecto-me das interações midiáticas e, como o poeta Pablo Neruda, silencio, "quero aprender ainda, quero saber se existo". Observo o encontro infinito de azuis cortado por um lastro de espumas, que para mim se dispõe como imensa folha em branco aguardando as devidas impressões.

É claro que um cruzeiro de luxo abrange festas, espetáculos teatrais e shows musicais; cassinos e restaurantes diversos, e cada passageiro aproveita a viagem como melhor lhe aprouver. Eu gosto de contemplar o mar, vasculhar o horizonte, encontrar perdidas memórias, navegadores longínquos, rotas impossíveis, descobrimentos. As ondas se encrespam sopradas por ventos poderosos no Estreito de Drake. Então, busco nos versos de Fernando Pessoa a justificativa aprazível para este particular Bojador no extrapollar de limites possíveis: "Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu". No infinito gelado o Criador está tão próximo, como parecem anunciar as aves solitárias, albatrozes-errantes, corvos-marinhos seguindo o vento que presentifica o divino, assim como o alvorecer do sol e o despontar da lua.

E de repente me chegam, como pássaros visitantes, uns versos que não quero aprisionar. Então, peço permissão para aqui os libertar:

 

"Da janela azul da nau,

 Que neste momento habito,

 Vislumbro o largo  infinito

 E fico a me perguntar:

 Quem dobrou o horizonte

 Na linha perfeita distante?

Deita assim o firmamento

Sobre o lençol ondulante,

Estendido até onde a vista

Permite-me alcançar,

Numa tela tão perfeita

Que somente ao Criador

É competência criar.

E o navio vai singrando

Cortando em partes o mar

Deixando o lastro imponente,

Rendado por mão experiente

De alguma ninfa ou sereia,

Com espumas branquinhas

Que não se dispõem a findar.

E o poema pulsante

Quer se transmitir além-mar,

Deixando alguma memória

Em  cenas  que vão retornar.

 

Voltando a esta prosa, Ushuaia, sob céu cinzento, chuva fina e fria, foi nossa primeira escala e no trem das nuvens nos transportamos para mais um sonho nesse recanto do fim do mundo, cujo mergulho intimista nos faz distinguir outras cores que se diferenciam na paisagem montanhosa entre céu e mar. Adiante, regressamos ao barco garboso que com alguns dias de navegação nos levaria a Port Stanley, capital inglesa das Falklands, tão próxima da Argentina e pertencente ao distante Reino Unido. Ansiosos para conhecer estas ilhas (Malvinas?) que já foram palco de guerra em disputa por tal propriedade, suscitando polêmicas até os dias atuais. Mas noite tempestuosa impediu nossa descida em escaleres (ou tenders) que poderiam não suportar vagalhões de até oito metros de altura. E seguimos com um sentimento de perda do conhecimento que ficou ao largo no oceano antártico. O Navio no frenesi de festas e shows subia sobre a cristas das ondas que pareciam rir-se, prepotentes, exibindo a força indomável da natureza.  Três noites neste trecho nos embalariam como redes balançadas por mãos poderosas num subir e descer, e ficávamos à mercê do mar, ainda que no total conforto, tecnologia e segurança proporcionados pela inteligência humana.

O tempo disponível nos mostraria petréis gigantes, gaviotins, albatrozes de cabeças cinzas, skuas; na expectativa pelo Pinguim Imperador, antártico, e seus lindos pichones ou crias, cujas espessas camadas de gordura e penas curtas e rígidas lhes dão proteção adequada ao frio. Além disso, a qualquer momento, um esguicho no mar, poderia nos alertar para a presença majestosa das baleias. E os elefantes marinhos que deram nome à Elephant Island, com toda sua imponência glacial que nos presenteou com uma imagem única, fantástica?  Estariam a nossa espera? Estávamos enfim, nas Terras Antárticas e a Paradise Bay nos apontava; numa redundância, o paraíso branco, silencioso, indescritível em palavras, num alumbramento impensável.  Uma ou outra foca de Weddell, descobertas sob o olhar de binóculos, eram pontinhos nos glaciares, que as vezes se desgarravam e ficavam à deriva com incríveis quilômetros de extensão.

Uma vaga imensa traz-me novamente à lembrança os exploradores e suas expedições ao continente branco (o único que foi verdadeiramente descoberto), nesses dias de mar sem fim, remontando aos anos em que as terras austrais eram incógnitas, bem como à idade heróica das explorações. Capitão James Cook, Capitão William Smith, Fabian Von Bellingshausen, Otto Nordenskjöld, os quais, dentre outros, assim como Shackleton, citado anteriormente, desbravaram o vasto oceano em busca de empreitadas surpreendentes nas terras geladas.

Mas por que devemos nos importar com a Antártida?  Não só a beleza e a grandiosidade que parece nos transcender ao sagrado, ao imaculado, ao perene, mas sobretudo refletir sobre o bom funcionamento dos oceanos, os recursos da natureza, a história dos planetas sustentada nas bases científicas que se assentam nessa porção de  terras recobertas  por blocos de gelo, e também para que se possa evitar as indústrias foqueiras e baleeiras, os danos aos animais (não só os mamíferos, como também os invertebrados). Ainda é constante o perigo da diminuição da capa de ozônio e o contínuo aquecimento global, não esquecendo tampouco a contaminação por plásticos e microplásticos que poluem os mares. Atualmente, 87% dos glaciares da Península Antártica têm retrocedido nos últimos 50 anos, segundo múltiplas pesquisas. Então, não se ama o que não se conhece, já dizia Santo Agostinho, pois o conhecimento é uma premissa para o amor. Portanto, a importância da proteção a Antártica no tratado firmado por mais de 54 países, que atualmente procuram resguardá-la e regular a atividade humana, garantindo a conservação deste ambiente para as gerações futuras, salvaguardando a vida silvestre e promovendo as investigações científicas para mantê-la segura.

Dentre as bases científicas, podemos destacar a brasileira Estação Antártica Comandante Ferraz; a argentina Esperanza, de nome bem sugestivo; a chilena González Videla (estas duas últimas tive a oportunidade de passar bem próximo e apreciar suas instalações, com o navio em trajeto lento ao largo da Baía Paraíso), além da americana Estação Polar Amundsen-Scott, que honra com sua denominação dois grandes exploradores que atingiram o Polo Sul em 1911 e 1912. Esses locais abrangem pesquisas em diferentes áreas, como glaciologia, meteorologia, geofísica, astronomia, estudos médicos e astrofísica.

Navegar é preciso, voltemos ao ondular do mar e as paradas esperadas pelos navegadores, na alegria do "terra à vista!" Puerto Madryn, argentina com herança galesa, em dia de céu azul celeste e mar de calmaria, num verão preguiçoso aproveitado pelo turistas e nativos, nas praias de areias cinzas, lotadas de motohomes, em férias contemplativas frente ao mar e, mais adiante, em Punta Lomba, os lobos marinhos deliciam-se nas águas frias, parecendo exibir-se aos visitantes que se acotovelam nos miradouros na busca da foto perfeita. O Navio chama e partimos outra vez e a cidade grande vai ficando pequenina até sumir ao longe, guardada em memórias afetivas.  A vida e suas paradas, idas, desembarques, navegação. Na ponte de comando, mão firme nos sustenta nas tantas travessias. Desliza minha nau, desfralda a bandeira da vida e mostra o colorido, passageiro, porém pincelado em telas inesquecíveis.

Contudo, a realidade desponta e quebra o idílico navegar: após três horas da partida, um passageiro é acometido de mal súbito e se faz necessário retornar a Porto Madryn.  As palavras do mestre Guimarães Rosa, a quem dediquei anos de pesquisa entre mestrado e doutorado, chegam sabiamente: "Viver é muito perigoso".  Assim,  alguém que estava num momento de fantasia é defrontado com a finitude, sempre à espreita, estilhaçando o cristal perfeito do devaneio. Mas, como em comum acordo, após este dramático retorno, continuamos com os festejos a bordo. Muita música, dança, comidas e bebidas. Netuno e Baco festejam o oceano Atlântico, cujo nome vem de Atlas, filho do mitológico deus do mar, rumo a Montevidéu. As férias estão terminando e a capital Uruguai nos receberá com seus doces de leite especiais, suas grandes ramblas e também o tango, com quem disputa o domínio argentino.  Tão especial bailar faz chegar alguns versos, pois o compasso dois por quatro, de grande dramaticidade, desperta melancolia e traz alguma saudade, mas também é alegria, pois este rodopiar é semelhante a voar.

E assim, caro leitor, que me acompanhou nesse percurso além mar, espero que não esqueça da Antártida majestosa, para que seus alvos blocos de gelo fiquem sempre a cintilar e despertem o sentido universal para deles bem cuidar, não deixando que derretam em águas que engrossam o mar. E que leituras possam vir a inspirar a rotina  que nos transporta do dia a dia e nos faz embarcar a lugares distantes, na imensidão polar, pois dando continuidade a frase linhas acimas citada, "navegar é preciso, viver não é preciso". Finalizando: o retorno ao meu Buenos Aires querido, de escritores e intelectuais ilustres como Júlio Cortázar, Adolfo Casares e Jorge Luís Borges. Deste último deixo como adágio uma frase que se tornou famosa, a provocar reflexões: "Todos os caminhos levam à morte. Perca-se!"

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Ana Clara Guterres Há 5 dias Natal/RNLindo texto, quase uma experiência imersiva nessa viagem maravilhosa! O poema arremata tudo com chave de ouro!
Sandra Xavier Silveira de melo Há 7 dias Natal.rnAchei o texto da Socorro muito interessante, principalmente pela forma como ela descreve a experiência na Antártida. Dá pra sentir a conexão dela com o lugar e como essa viagem a fez refletir sobre coisas mais profundas, tipo a memória e a imensidão do mundo. Além disso, achei legal como ela mistura a aventura com a poesia, trazendo referências como Shackleton e Fernando Pessoa. Dá uma sensação de que cada momento ali tem algo a ensinar. É um texto que faz a gente pensar, sabe?
NobreHá 7 dias RNExcelente narrativa. Maravilha de expedição. Eu Chisco, dançou Tango,hehehe? Fantástico. Obg por brindar-nos com essa imaginação
Fábio FreireHá 1 semana Natal/RNUm belíssimo texto. Tão rico em detalhes, que nos permite navegar sobre a natureza imponente e majestosa da região Antártida, todavia, sem esquecermos da necessária e contínua vigilância ambiental sobre o desafiador mundo das terras geladas.
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