Por: Dra. Flora Guilhonm, colunista exclusiva da Plataforma Nacional do Facetubes, direto de Londres.
(Trad.livre de: Mhario Lincoln).
Londres, 12 de maio de 2025 — Quem procura a pedra angular da humanidade fora dos livros sagrados acaba inevitavelmente diante de uma figura científica: a chamada “Eva Mitocondrial”. Graças ao DNA escondido nas nossas mitocôndrias — herança materna que escapa aos rearranjos genéticos do núcleo — os laboratórios confirmam, década após década, que todos os 8 bilhões de pessoas atuais convergem para uma única mulher africana que viveu há algo entre 150 mil e 200 mil anos, nas savanas que hoje se estendem do norte do Botsuana ao Zimbábue. É a mesma premissa reforçada por estudos que, neste ano, voltaram a encontrar no sul da África o coração pulsante da nossa árvore genealógica, reiterando a velha máxima do “Out of Africa” — a modernidade biológica que se espalhou pelo planeta nasceu ali, no quintal da “Mãe de Todas as Mães”.
A genética sustenta o argumento como uma coluna de ferro. Das ossadas marroquinas datadas em 300 mil anos às varreduras genômicas publicadas em março último pela Journal of Physiological Anthropology, o veredicto permanece: nenhum outro lugar do mundo guarda tamanha diversidade de haplogrupos quanto a África, sinal inequívoco de que todas as rotas migratórias partem daquele solo primeiro. Essa montanha de dados derrete qualquer traço romântico de multirregionalismo: se na Eurásia houve dança de genes entre sapiens, neandertais e denisovanos, o palco ainda era povoado por atores que carregavam o carimbo de uma matriarca africana.
Mas o impacto não se mede apenas em bases nitrogenadas. Sob a lente da sociologia, essa ancestral única ajusta nosso foco para algo raramente partilhado num mundo fraturado: uma fraternidade biológica que desbanca fronteiras, cor da pele ou passaporte. Se todos descemos da mesma progenitora, as atuais linhas imaginárias — muros, bandeiras, castas — revelam-se recentes e frágeis, construções históricas assentes sobre um parentesco remoto, porém factual. A ética da empatia, portanto, ganha densidade de DNA: não é idealismo, é consanguinidade.
A filosofia lê nessa descoberta um espelho ontológico. Desde que civilizações arcaicas atribuíam nossa origem a deuses ou titãs, a pergunta “de onde viemos?” sempre serviu para soldar identidades. A biologia moderna ocupa agora esse vácuo narrativo com um rosto feminino de argila ancestral. A Mãe África torna-se ponto de partida e, ironicamente, porto de chegada: definir-nos por nações ou etnias perde solidez diante de um tronco comum que nos lembra — como escreveu o antropólogo Claude Lévi-Strauss — que a diversidade humana não é um obstáculo, mas a própria condição da espécie.
Psicologicamente, a “mãe universal” oferece um antídoto contra o desencaixe contemporâneo. Em tempos de crises de pertencimento, árvores genealógicas planetárias dão contorno a indivíduos órfãos de grandes histórias. Descobrir que há um fio invisível ligando todas as aldeias do planeta — do Saara às favelas cariocas, dos fiordes noruegueses às vielas de Mumbai — pode reduzir a ansiedade existencial que faz tanta gente escarafunchar o passado em testes de ancestralidade. A mensagem é simples e poderosa: não caminhamos sozinhos, carregamos um eco comum que nos precede e nos ultrapassa.
Na prática, cada nova amostra de DNA que confirma a idade e a localização dessa matriarca é mais um tijolo na mesma parede: a ciência está construindo uma narrativa unificadora sobre quem somos. E, paradoxalmente, quanto mais a tecnologia esmiúça nossas diferenças, mais evidente fica o que nos iguala. A linhagem materna que sobreviveu quando todas as outras se extinguiram — talvez por acaso, talvez por seleção — hoje lateja em cada mitocôndria humana, lembrando que a história de um único clã africano se tornou a saga inteira da humanidade.
Assim, a “Mãe de Todas as Mães” deixa de ser metáfora e assume contorno de dado empírico — conceito que transcende laboratórios para dialogar com a ética, a política e o senso de responsabilidade planetária. Se compartilhamos uma origem, talvez compartilhemos também um destino: o cuidado mútuo e o zelo pelo ambiente que herdamos junto com esse legado mitocondrial. Afinal, somos não apenas cidadãos de nações, mas herdeiros de um mesmo lar primordial.
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Fontes consultadas: BBC News/The Guardian (2019); AS USA (22 abr 2025); Journal of Physiological Anthropology via Phys.org (4 mar 2025). BBC.