
*Mhario Lincoln c/a Editoria de Pesquisa e Extensão | Plataforma Nacional do Facetubes
"O homem é uma corda esticada entre o animal e o Super-homem: uma corda sobre o abismo...". Friedrich Nietzsche
Apesar de ser um aficionado por Circo e coisas do Circo, assisti (ao vivo) apenas dois espetáculos. Um, ainda garoto, quando foi a São Luís-MA, o Circo Thiany; e outro, a convite de minha sobrinha Fernanda Milred (e seu esposo), quando estive em São Paulo, um pouco antes da pandemia. Fui com eles a um espetáculo do “Cirque du Soleil”. Aliás, magnífico espetáculo; moderno, dinâmico, musical, colorido. Nesse ínterim fiquei simplesmente fissurado quando, também, garoto, assisti nas telas do Cine Éden (São Luís-MA), ao filme “O Maior Espetáculo da Terra”, vigoroso, exuberante, impiedoso, desmascarante. A começar pelo melhor ator da época: Charlton Heston; segundo, pelo imenso diretor que era Cecil B. DeMille, que transformou o picadeiro em épico popular. A trama encena a disputa pelo “centro da arena”: trapézios em rivalidade, um diretor implacável e um palhaço que nunca tira a máscara (James Stewart como Buttons), figura de segredo e compaixão.
Na prosa, não vamos longe. Como eu tenho essa mania de sempre pontear meus escritos misturando filosofia, tomei a liberdade de analisar o circo, neste caso, como um laboratório de conceitos. Claro que tive que convidar Friedrich Nietzsche para esta mesma mesa, porque figura, no prólogo de “Assim Falou Zaratustra”, o equilibrista e o bobo (lembram?): a travessia na corda é metáfora do humano lançado entre o que foi e o que pode ser. Mutatis mutandi: o tombo do Homem (artista), acompanhado pelo conforto de Zaratustra, faz do risco um valor; e do espetáculo, não distração, mas prova de coragem ontológica.
Na poesia, por outro lado, o circo aparece como síntese de beleza e vertigem. Em Mário Quintana, a imagem da “moça do arame” fixa o deslumbramento da infância: “A moça do arame / equilibrando a sombrinha / era de uma beleza instantânea e fulgurante!” E quem não se apaixonou por uma pessoa de circo? Tem inclusive histórias de grandes fugas por paixão, quando o circo baixa as lonas e sai da cidade.
Manuel Bandeira, ao imaginar “Mozart no céu”, recorre precisamente ao idioma circense para dizer o assombro: o compositor “entrou no céu, como um artista de circo, fazendo piruetas extraordinárias sobre um mirabolante cavalo branco”, unindo leveza e transcendência com uma imagem popular e nobre ao mesmo tempo.
Até eu mesmo, tentei enveredar por esse tema:
“A bandinha abafou meu choro/ de saudade. / Queria te jogar beijos, invés de facas. /Os caminhões levaram tudo/ Você, as facas e minha esperança. Mas nunca esquecerei: foi meu rito de passagem...”. (Mhario Lincoln).
“Ludmilla”, versinho que fiz, após o Circo Thiany partir.
Na verdade, o circo sempre foi um atalho para o assombro. Em Ferreira Gullar, ele aparece como epifania de menino — “é pouca a vida / que a cidade oferece, / até que chega o circo” — versos de “Improviso para a moça do circo”, que condensam desejo, fome de mundo e a súbita suspensão da gravidade cotidiana. Fantástico, não é? O poema integra o livro Na vertigem do dia, praticamente a chave de leitura da memória e do imaginário do autor maranhense.
Outro nome que acende imagens circenses na poesia do Maranhão é a magnífica Laura Amélia Damous. Em “CIRCO”, a poeta faz do corpo um picadeiro de tensão e aplauso:
“Avanço e recuo/ ao estalido da dor/ Me curvo/ para os aplausos da plateia/ Alguém pede bis”. Laura Amélia Damous.
A síntese de risco, dor a meu ver, traz a ratificação do preço de cada apresentação.
Luís Augusto Cassas, por sua vez, convoca o bestiário e a libido dionisíaca — “Príapo e Vênus se conjugam em hybris, leões de circo, vínculos e bicho.” O verso, de sua obra reunida, usa a imagem do circo para falar de excesso, risco e fascínio, como se a própria linguagem caminhasse na corda bamba entre Eros e pensamento. Maravilhoso ler Cassas em sua plenitude lírica. Aliás, ganhei dele os dois volumes “A Poesia sou Eu”, com mais de 1200 páginas deslumbrantes.
Entre os romancistas, Josué Montello inscreve o circo na paisagem da cidade e no fluxo das saudades. Em Cais da Sagração, (inspirador, forte e aliciante, em minha opinião), a chegada do “Circo Americano” suspende a rotina de Alcântara. A lona vira evento de comunidade, lampejo de modernidade e memória coletiva. Quel não leu, precisa urgentemente ler: “pelos meses de agosto e setembro. / Chegou a Alcântara o Circo Americano, / segundo se dizia — o melhor do mundo.” (JM).
Viriato Corrêa, em Cazuza, fez do circo um rito de passagem da infância. O capítulo “O circo de cavalinhos” flagra a vertigem de notícia que corre pela escola e a expectativa miúda do espetáculo. Uma prova de como a arte ambulante redesenha os contornos da imaginação do menino narrador. (Pesquei esse trecho do dinodealcantarablog.wordpress.com).
“— Ia chegar um circo de cavalinhos. / — Quem lhe disse? / — O Biné.” (JM).
Humberto de Campos imenso prosador, memorialista e cronista maranhense, cuja produção literária envolveu publicações espíritas, indo além da morte física do poeta, incorporou o circo em suas crônicas, tomando-o como metáfora de mundo e lugar de tragédias e fascínios antigos. Na tradição de sua prosa breve, o circo funciona como espelho de uma sociedade entre festa e risco.
Vale lembrar que a presença do circo foi, de fato, algo muito agregador para a Cidade de São Luís, onde nasci. Lembro-me da época esplendorosa da cena cultural onde toda a cultura produzida lá, mudou-se de ‘mala e cuia’ para o espaço “Circo da Cidade”, local que durante décadas acolheu montagens, espetáculos, música, convenções, encontros, em um traço de ajuda direta para entender o quanto o Maranhão é possuidor de inúmeros talentos, em todas as áreas de produção artístico-plural da Humanidade.
Em tempo: veja abaixo, entrevista que gravei com o grande artista e mímico Gilson César, um dos que lutam pela volta do “Circo da Cidade”.
Destarte, a lona em meu entendimento, acaba dando abrigo a três impulsos literários, com base nas citações expostas: memória e infância (Gullar, Corrêa), corpo e risco como cena pública (Damous, Cassas) e comunidade em estado de exceção, quando a ordem rotineira se dobra ao maravilhoso (Montello). A estética do circo com trapezistas, palhaços, malabares, o anúncio do “respeitável público”, está menos no exotismo do espetáculo e mais na maneira como esses autores leram a vida, igual, como experiência radical de precariedade e brilho.
Se a cidade oferece pouco, como escreveu Gullar, o circo oferece intervalo, um tempo lateral onde é possível reaprender a cair e levantar. Os motes vão se multiplicando por onde o Circo passa e deixa aquela “gosma intestina” (Yuri F.) de bichos rastejantes, povoando os insights de milhares de poetas e escritores em todos os continentes do Mundo, reforçando a ideia de DeMille de que o Circo é “O Maior Espetáculo da Terra”.
ENTREVISTA EXCLUSIVA COM GILSON CÉSAR: Circo Voador
* Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.
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