Contos de Hoje
DESPERTAR
Socorro Guterres, especial para o FACETUBES.
O silêncio gritante despertou Cândida. Era o primeiro dia do pós-mundo. O primeiro dia em que abria as janelas após o tsunami avassalador. Os pássaros retornavam tal qual na nau de Noé. Da torre altíssima, entrevia-se as águas recuando. As nuvens das tormentas dissipavam-se. O sol retornara, aquecendo os meados da manhã. Um sopro de vida entrava pela brisa que balançava as cortinas do refúgio de Cândida nos últimos 11 dias. Era a saída da escuridão.
Os tocos de vela testemunhavam os dias solitários, privados de energia elétrica, em que o tempo parara sob a chuva que caíra e se juntara à força do mar. Cândida agora poderia perscrutar o que lhe restara. Na verdade, observava que até onde sua vista alcançava, a torre em que se encontrava era a única construção remanescente que os abalos sísmicos deixaram em pé. Da pequena ilha, cujo farol era sua residência, nada mais se avistava. O vilarejo e suas casinhas de pedra já não existiam. Não lembrava como, na correria louca pela vida, conseguira subir todos os degraus até o topo.
Nos dias felizes passados nesse lugar, ela lera sobre um seu homônimo, Cândido também, que enfrentara mazelas desmedidas e não perdera o otimismo. Alguma razão houve para deixá-la nessa situação? Afinal, o mundo era intrinsecamente bom? Perguntava-se. Porém, era hora de recomeçar, a fome que a atordoara precisava ser amainada.
Descer os tantos degraus e procurar pelos 56 moradores também se fazia necessário. Mas, somente o vento parecia responder aos chamados de Cândida. Clamava sobretudo por Thomas, responsável pela ilha que ela ajudava a administrar. Na confusão da fuga, ela o viu orientando e tentando ajudar a pequena população, o que certamente pode ter lhe custado a vida. Eles estavam na parte baixa das terras e do alto da colina onde fincava-se o farol Cândida assistia impotente as ondas revoltas tragando-os para o mar.
O pensamento correu atrás dos momentos iniciais da tragédia. Fazia sol e tudo parecia imensamente parado, quando bando de aves arrulhou em desordem e disparou numa espécie de migração inesperada. Cândida precipitou-se para observar o estranho voo e assustou-se com algumas cobras que emergiam de uma espécie de fenda no solo arenoso que circundava as imediações do acesso ao farol. Era seu dia de vistoriar as instalações, o tempo estava bom, mas nuvens pesadas se aproximavam ao longe. Um mormaço pairava no ar.
Memória, impressão e espera, o tempo assim se mostrava a Cândida. Corria e acelerava tudo: pensamento e ordem das coisas. Tudo o que passou e tudo o que fazer, a partir dele, Tempo. Descia as escadas a procura de vida, de alimento, de alento. Retornava em cada degrau à subida anterior, 11 dias atrás. Medo e Esperança se irmanavam nesse espaço de tempo.
Cândida gostava da casa do faroleiro, um pouco abaixo da construção-guia dos mares. Tanto que em um pequenino espaço, antes do topo e sua luz circular, adaptara um cantinho de repouso, com direito a leve cortinado que transparecia nos vidros perfeitamente limpos diariamente. Era um farol atípico, funcionando mais como observatório, com um nome sugestivo: Lâmpada de Deus, luz e orientação para os viajantes do mar. Bem como para os viajantes da vida, refletia Cândida, dia após dia, contemplando nas noites estreladas o facho luminoso que se estendia mar afora. Ela o pressentia sublime, e queria uma luz assim a lhe mostrar o caminho a seguir, as águas tranquilas separando-se das traiçoeiras correntes; o viajar sob égide divina.
Para alcançar o conhecimento verdadeiro era necessário o auxílio de Deus, divagava Cândida, recordando livros de filósofos santos que lera e relera na pacata monotonia dos dias compridos e noites tempestuosas na morada escolhida por ela, a procura de um significado maior.
Faminta, buscou conter as lembranças e procurar auxílio. Viver se fazia necessário. Thomas, gritava repetidamente e o eco respondia-lhe como um coro cruel. Ao alcançar os primeiros passos na terra ainda molhada sobre o alto da colina, só devastação encontrava. Poucos arbustos ainda de pé, nada além da visão distanciada do mar. O local que sediava as casinhas sofreu o dano maior. Não restara pedra sobre pedra. Só o céu resplandecente sobre o mar celeste. Mas, ao longe ela avistou, destacando-se numa árvore perdida em meio à assolação, um tom vermelho. Seria sua sobrevivência? Correu a colher a fruta sagrada e fincou os dentes na mais doce romã que já comera. Romã Bendita, fruta nascida do sangue do deus Dionísio e também representante de Perséfone na terra, cujas sementes rosadas por certo vingariam novos frutos. Precisava acreditar no futuro. O suculento fruto lhe fortalecia na verdade explícita, aletheia manifestada aos olhos do corpo e do espírito. A vida tão inesperada agora, como fora o voo dos pássaros desesperados. A manifestação do que é e existe como é. Estava só, e só a sua própria lógica e razão lhe mostraria isso, sem a necessidade de outro olhar? Como a posse de um fruto proibido, a romã lhe resgatava discernimentos. Como estás Cândida? Onde lançar teu olhar?
Os pensamentos misturavam-se à corrente de emoções, mas ela sabia que tudo é mutável e transitório. Lembrando os velhos mestres, o bem seria a atitude racional para com o sentimento e os desejos. Então, ela desceu a íngreme encosta e foi em busca de sinais de vida. Da pequenina população, em sua maioria composta de homens, alguém estaria a salvo, como ela. Thomas era seu pensamento constante. Ela precisava estar com ele, lançar perguntas e obter respostas, para nesta troca atingir o conhecimento, definir posicionamentos, pois a medida de todas as coisas não estaria somente nela, Cândida, era necessário o outro, em suas particularidades e subjetividades. Ela dividia as funções de guarda em sua pólis, sua cidade-farol. Exercia as mesmas funções de Thomas, portanto era merecedora do status quo do homem, já que tinha as mesmas qualidades deste, como bem dissera aquele que prescrevera a saída das trevas para a luz, do imaginário das sombras para a realidade atuante, um nome que ela guardou: Platão.
Após árdua caminhada, acercou-se dos destroços dos pequenos barcos que serviam ao aporte das embarcações maiores que ocasionalmente por lá passavam. Contudo, não havia sinais de sobreviventes. Como poderiam ter sumido assim, sem rastros ou sinais? De que espécie de sonho ela despertara? Ou estaria no pior pesadelo? Ela duvidava deste estado do agora e se estava em sua real consciência.
Cândida sentia-se uma espécie de náufrago, ainda que em sua própria fé. Perdera o rumo e a bússola da esperança. Sozinha. Única mulher, nascida do vazio em que se encontrava, como uma nova Lilith. Prendeu os cabelos anelados e dourados pelo sol da ilha em dias passados. Ajeitou-se na pontezinha que servia de atracadouro. Espichou os pés machucados para as águas passageiras e ficou a esperar um sinal.
Voltando ao início desta narrativa, era o primeiro dia do pós-mundo, do pós-mundo de Cândida. Os pés escorregaram e tocaram a água fria. Thomas a olhava sorridente a perguntar-lhe se dormira ali no embarcadouro. Cândida estremeceu, olhou ao redor e a ilha majestosa resplandecia em perfeição. Ela então perguntou: o mundo não acabou? Thomas respondeu-lhe com a percepção dos mestres tantas vezes lidos: "Toda vez que dormimos o mundo acaba".