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De Raimundo Fontenele: "1967 FOI UM ANO BOM"

Raimundo Fontenele é convidado da Academia Poética Brasileira.

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: Raimundo Fontenele
09/07/2024 às 12h31 Atualizada em 09/07/2024 às 13h59
De Raimundo Fontenele: "1967 FOI UM ANO BOM"
Arte: Mhlai

Raimundo Fontenele, poeta, escritor e crítico literário. 


          O ano era o de 1967. Minha segunda chegada a São Luís, a segunda descoberta, a segunda e quase interminável temporada que ajudou na minha formação de jovem e poeta. E militante estudantil de esquerda. E que me jogou, depois, nos braços do movimento hippie.
            Mas vamos por partes, tipo Jack, o Estripador. O ano de 1962, que passei em São Luís, passei-o confinado, como interno, no Seminário de Santo Antônio.  Pouco conheci da cidade, a Rua José Bonifácio, uma casa próxima à Beira Mar onde passei alguns domingos, a rua, me lembro bem, era a Montanha Russa.
            Nós, estudantes do interior, tínhamos as madrinhas, senhoras beneficentes que apoiavam o Seminário de diversas maneiras, e uma delas era receber seminaristas em suas residências, dar-lhes um pouco de afeto e carinho, até mesmo amor, em alguns casos, para compensar a solidão e a falta que nos fazia a casa paterna.
            Todo aquele ano de 1962 cumpri a rotina diária do Seminário. Acordávamos às 5:30, aí seguia-se um banho rápido, cronometrado, depois de nos vestirmos no dormitório coletivo, calça cinza e camisa meio amarelada, seguíamos em fila para a santa missa na igreja.
            Após a missa, e sempre em silêncio, em fila, a próxima parada era no Refeitório. Café com leite, aquele leite em pó distribuído para o Seminário pela Cáritas que os recebia do Governo norte-americano, através do Projeto Aliança Para o Progresso, nos tempos do Presidente John Kennedy, era isso, não era?
            Aqueles foram dias de ordem e disciplina exterior e interior, de aprendizado e de conhecimento. Sem ordem e disciplina o caos instala-se e nunca se sabe as graves consequências que causarão no espírito de jovens em formação e crescimento, aqueles ritos de passagem que os jovens têm que viver: Deus ou o Diabo, sexo ou castidade? Frugalidade ou opulência, riqueza ou pobreza? A concupiscência da carne até a sua mais completa devassidão ou a busca pela elevação espiritual até tornar-se um santo, um eleito, conforme a denominação das diversas religiões?
            Nós tínhamos tudo ali. Havia homossexualismo e sensualidade entre seminaristas e entre padres e seminaristas. Ouvia conversas, sinais, de vez em quando um seminarista era desligado abruptamente do seminário e sabíamos que fora pego em alguma falta grave, algum pecado inconfessável.
            Muitas vezes, sozinho, eu, nas horas vagas, me escondia lá no alto da torre da igreja para ler livros profanos, como se chamavam os livros que não pertenciam à literatura sacra. Eu conseguia levar para dentro do seminário tais livros e até mesmo gibis, as aventuras do velho oeste americano.
            Era sempre no intervalo entre o final do almoço e o início do próximo horário de estudos.  Algo entre o meio dia e duas horas da tarde. A maioria dos seminaristas dedicava-se a jogos permitidos, tênis de mesa chamado de ping-pong, pega varetas, coisas desse tipo. Era nessas horas que eu preferia os livros e enveredava sorrateiramente para a torre da igreja.
            Ora, vejam só: às vezes eu fazia coisas mais perigosas sujeitas a castigos severos se fosse apanhado, como fumar um cigarro continental sem filtro ou até, vá lá, tocar uma inocente punhetinha.
            Ah, saudades da Copa do Mundo de 1962 no Chile!
            Na hora dos jogos as aulas era interrompidas, os padres ligavam o rádio e todos nós corríamos até o pátio para ouvirmos os jogos narrados por um dos locutores esportivos da minha predileção e cuja voz, só de lembrá-la, ouço-a nitidamente nos ouvidos da memória: Waldir Amaral.
A seguir o que encontrei no Google sobre esse locutor esportivo, e, ao homenageá-lo, faço-o também a todos os profissionais dessa área, do início aos dias de hoje, dos grandes aos pequenos, dos famosos àqueles que permanecerão anônimos, mas em algum momento, todos esses, fizeram a alegria de um torcedor e também a tristeza de outro ao gritarem aquela palavra mágica: goooooool!
Waldir Amaral (Pilar de Goiás, 17 de outubro de 1926 – Rio de Janeiro, 7 de outubro de 1997) foi um talentoso profissional de comunicação, um dos pioneiros na transformação das jornadas esportivas radiofônicas num verdadeiro show. Criou bordões que atravessaram todo o Brasil e tornaram-se referência nacional como “indivíduo competente”, “o relógio marca”, e “tem peixe na rede”. Criou também o apelido “Galinho de Quintino” que acompanha Zico até os dias de hoje.
Waldir iniciou sua carreira na Rádio Clube de Goiânia. No Rio de Janeiro, passou pelas rádios Tupi, Mauá, Continental, Mayrink Veiga, Nacional e Globo. Nesta última, por sinal, permaneceu de 1961 a 1983. Foi Waldir, ao lado de um dos diretores da Rádio Globo, Mário Luiz, o "criador intelectual" da vinheta "Brasil-sil-sil!", gravada pelo radialista Edmo Zarife durante as Eliminatórias da Copa do Mundo de 1970, para levar a seleção à frente, e que está no ar até hoje.
Waldir Amaral faleceu dez dias antes de completar setenta e um anos, vitimado por uma insuficiência coronariana. Em sua homenagem, a Rua Turf Club, no bairro do Maracanã, passou a se chamar Rua Radialista Waldir Amaral. Rua, aliás, onde se encontrava a sede da Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ).
Profissional extremamente criativo, Waldir Amaral costumava dizer vários bordões enquanto narrava a partida. Alguns bordões criados por ele:
"Tem peixe na rede do..." Ele dizia se referindo ao time que levava gol do adversário. "Choveu na horta do..." Ele dizia se referindo ao time que fazia gol no adversário. "É fumaça de gol" Ele dizia quando surgia uma oportunidade de gol: "Aproxima-se da área, é fumaça de gol..." "Caldeirão do Diabo" A grande área: "Vai cruzar no caldeirão do Diabo". "Indivíduo competente" Quem fazia o gol: "Indivíduo competente o Zico". "Deeeeez, é a camisa dele!" "O visual é bom, Roberto tem bala na agulha" Quando o jogador ia bater uma falta. "Jogada Petróleo" Uma jogada muito boa que resultava em gol: "um golaço numa jogada joia, uma jogada petróleo!" "Estão desfraldadas as bandeiras do Botafogo" Ele dizia logo após o gol. "Deixa comigo" Dizia logo após a vinheta do seu nome. "O relógio marca" Ele dizia quando dava o tempo de jogo.
Waldir foi um locutor original e que soube comunicar como poucos. Narrava pausadamente, com elegância e muito estilo. Foi um dos maiores radialistas esportivos de todos os tempos.
            Voltemos à Copa do Mundo de 1962 e ao Seminário de Santo Antônio. Os jogos do Brasil foram dois a zero no México, aí empatamos com a Tchecoslováquia em zero a zero e o Pelé saiu de campo machucado, não voltaria mais ao time. Por conta da combinação de jogos, no terceiro jogo contra a Espanha, o Brasil precisava vencer.
            No lugar de Pelé entrou um jovem jogador conhecido apenas da torcida botafoguense, o Amarildo. E pra completar, a Espanha largou na frente aos 35 minutos, foi aquele balde de água fria. Segundo tempo aos 72 minutos Amarildo empata, e aos 86 o mesmo Amarildo faz dois a um selando a vitória brasileira.
            Pô, só pode o negão ter incorporado no Amarildo, diziam os mais fanáticos por Pelé. O resto foi moleza: três a um na Inglaterra, quatro a dois no Chile e na final lá vem a máquina mortífera de novo, a que empatou conosco e tirou Pelé da copa. A vingança foi “maligrina”, conforme Bento Carneiro, e enfiamos três a um nos tchecos.
              Mas o que foi marcante mesmo foi o jogo contra a Espanha. Os padres haviam preparado um tonel de chocolate feito com aquele leite que vinha dos States, através do programa Aliança para o Progresso. E após a vitória contra os espanhóis caímos de boca no chocolate, servindo-nos à vontade.
            Pra encurtar a história: de noite foi aquela correria, fila imensa na porta do banheiro, tinha nêgo que mal saía do banheiro voltava pro rabo da fila, com as mãos sobre a barriga, os olhos esbugalhados, aquele amarelão, o movimento entra e sai do banheiro quase não termina naquela noite. Bendito Amarildo, maldito leite americano, dizíamos, esquecendo que o problema foi apenas um dos nossos pecados capitais: a gula e não o leite. 
            Lembro também que fomos a passeio conhecer Alcântara. De barco. Enfrentando aquelas ondas gigantes e o mar bravio e nessa travessia muito de nós sucumbiu ao enjoo, e numa expressão usual quase botamos “as tripas pela boca”. Eu fui um deles.
            Uma cidade fantasma. Assim me pareceu Alcântara naquele longínquo ano de 1962.  Os prédios em ruínas, as ruas calçadas de pedras com o mato rasteiro com seu verde dando um pouco de vida àquilo que parecia uma natureza morta.
            Lá, nessa época, e num desses prédios de arquitetura colonial portuguesa, um dos quais fora construído para abrigar a comitiva durante visita do Imperador que, segundo a lenda, não chegou a efetivar-se, funcionava o presídio estadual. Para lá eram mandados os indivíduos para cumprir pena por alguma condenação.
            Passados tantos anos, guardo vivamente na memória a figura de um negrão, era assim que chamávamos um cara de pele escura, o tal afro-descendente do politicamente correto, sim, um negro forte, grande, barba por fazer, mal encarado. Seu crime: assassinara a própria mãe com uma mão de pilão. E é apenas isso que guardo daquele passeio, o vômito no barco e o matricida na cadeia. E claro, a paisagem, os prédios em ruínas, poucas e raras figuras humanas. Gente simples. Humilde. Pobre. Esquecida.
            No fim daquele 1962 os padres que dirigiam o Seminário de Santo Antônio resolveram me desligar do mesmo, achavam-me rebelde, brincalhão, sem verdadeiro espírito de seminarista. Fui assim devolvido à Diocese de Caxias que me enviou em 1963 para o Seminário da Prainha, em Fortaleza, mas aí é outra história, e nada tem de ludovicense nela.
Mas não esqueço os padres Bosco, ótimo professor de português, padre Oton, professor de latim, padre Carlos Melo, diretor espiritual, padre Marcos, o ecônomo do Seminário, e do padre reitor, de quem não lembro o nome, mas não esqueço a figura, franzina, um mineiro silencioso, de passos leves e de coração doce e afável.     
            Então voltemos ao ano de 1967. Cheguei em São Luís com o apoio do Padre Manoel da Penha Oliveira e do Deputado Estadual Luís Rocha. Falo em apoio porque eu era um jovem sem nenhum recurso material, meus pais não tinham condições de custear meus estudos.
Eu havia trabalhado nas campanhas políticas do Padre Manoel para prefeito de São Domingos, e ajudado também na campanha do Luís Rocha, e assim eles viabilizaram esta minha nova estadia em São Luís.
            Janeiro de 1967 voltei pra sentir aquele cheio de mar e maresia que era uma marca registrada da Ilha. Fiquei um mês e tal hospedado na casa do Luís Rocha, uma casinha de dois pisos na Vila Iná Rego, lembro do DER ali perto, o Canto da Fabril, território motense, o Estádio Nhozinho Santos e aí em seguida fui morar na Casa do Estudante, mas a gente chamava mesmo era de UMES.  Na Rua do Passeio. Lá pras bandas do Cemitério do Gavião.
            UMES e seus entornos. Vila Bessa. Belira. Lira. Madre Deus. Goiabal.  Nesses bairros, nos fins de semana em companhia de dois amigos, o Pestana e o Davilson, a gente saía procurando as famosas festinhas e as garotas. Renato e seus Blue Caps. E os sucessos “Não te esquecerei”, “Menina linda”, “Ana”, “Não quero ver você chorar”, “Dona do meu coração”. Quase sempre versões das músicas dos Beatles. Wanderley Cardoso atacava de “Bom rapaz” e “Doce de côco”; Jerry Adriani tinha “Querida”, “És meu amor”, “Quem não quer”. E o chefe da patota, Roberto Carlos e seu parceiro Erasmo Carlos, e uma gata chamada de ternurinha, a Wanderléia.
            E tome Rum Montilla com Coca-Cola. Muita agarração, muito chamego, beijos e tal, mas ninguém passava do limite, não tinha esse negócio de pílula anticoncepcional disseminada geral e como dizia a música do Roberto “casamento, enfim, não é papo pra mim”.
            Era o segundo ano de mandato do Governador José Sarney. Um dos governadores mais jovens do Brasil. Pertencera ao grupo chamado Bossa Nova da antiga UDN. Militares no poder, Sarney aderiu e passou-se para a ARENA. Justiça seja feita. Naquela época o Maranhão vivia momentos políticos de grande euforia e transformação. Pensávamos, até certo ponto, que estávamos enterrando o passado junto com a prática vitorinista de governar.
            Sarney chamara jovens entusiastas e competentes para a administração pública. Reinaldo Tavares. Haroldo Tavares. E outros. E uma cabeça pensante, o poeta Bandeira Tribuzi. Na educação o Dr. José Maria Cabral Marques, que visitara a Alemanha e o Japão, trouxe ideias, projetos, planos que foram sendo implantados ao longo daqueles vitoriosos primeiros anos da era Sarney: Projeto Bandeirantes, escolas de nível médio, profissionalizantes; Projeto João de Barro, educação de jovens (fora da faixa etária escolar) e adultos. E, então, o mais revolucionário deles: a TV Educativa, talvez a primeira, seguramente umas das pioneiras em todo o território nacional.
            Depois, bem, depois é depois do qual falarei depois.
Mas em 1967 ninguém poderia imaginar que José Sarney iria implantar uma nova era de caciquismo político, apoderar-se, enfim, da máquina pública para satisfazer projetos pessoais e satisfação de grupos que lhe eram fiéis, deixando o Estado após tantos anos numa situação de penúltimo lugar nos indicadores sociais.
            Quanto a mim, morava na UMES, tinha um emprego de Assistente Administrativo na Secretaria de Educação, à época instalada no terceiro andar do Edifício BEM, prédio pertencente ao Banco do Estado do Maranhão, na Rua Tarquínio Lopes. A mesma do Cine Roxy, da Assembleia Legislativa, e do inesquecível Colégio Santa Tereza, reduto de meninas, as mais belas e ricas, e, portanto, mais desejadas, mas inacessíveis para um jovem pobretão como eu. Contentava-me em admirá-las, desejá-las... Estudava, à noite, a terceira série ginasial no Liceu Maranhense, depois chamado Colégio Estadual do Maranhão.  Tinha 19 anos, me arrastara nos estudos, mas estava ali, esperando mesmo o quê? Nem eu sabia.
            Mas, de fato, 1967 foi um ano bom.

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ElianeHá 7 meses São Luís Esse é o FONTEnele. Excelente escritor, poeta,historiador, radical, e o mais importante: sincero, amigo.
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