Raimundo Fontenele
"O choro das pedras,/ dos réus sem infância,/ dos pés amputados / sonhando sapatos." NM
Nauro Machado requer um trabalho de maior rigor critico, estético e humano dos que este que ora tentamos realizar. Entretanto, a quase fascinação que sentimos, primeiro pelo esteta em si que é Nauro, e segundo pelo mundo de duplicidades e alucinações que embotam a mente do Poeta, nos leva a uma tentativa de penetrar em seu mundo poético-grandioso, e de dentro dele, dentre toda aquela alma em constante orgasmo e reinvenção, trazermos à claridade a treva feita luz pela mágica de quem canta.
Não o instante supremo da Criação, mas o instante de, em meio a este casco lamacento - o mundo - podermos contemplar o Homem em sua maior grandeza e plenitude, voltado para dentro de si mesmo, mas nem por isso hermético, pois um pouco de sensibilidade artística abrirá em nós a porta necessária ao entendimento da Luz que emana do verso naureano, como uma coisa nova, não a luz dos "puros", dos "normais", porém a Luz verdadeira, a que palpita e pulsa dentro da Treva e, por isso, mais autêntica:
"Quando amanhece na minha terra, meus olhos voltam às trevas de origem / abençoando as aves e as campinas / e o instante que tenho para vê-las."
Aqui se chega a uma definição místico-religiosa própria do Autor e não uma religiosidade herdada, convencionalmente abrupta e incompreensível para quem, como Nauro, ousou viajar mais para dentro de si mesmo, rompendo, para tal, barreiras burguesas e de uma moralidade falsa.
A verdade em Nauro é a essência das coisas que ele toca, que ele vive e sente. Não é a paisagística vigente dos ocupados com o Poder, a Fama, a Riqueza. Não é a margem dos ociosos porque não trabalham o seu mundo interior. E ao Artista interessa que estes dois polos opostos se toquem, se encontrem: realidade e sonho, loucura e sabedoria, perversão e santidade.
Podemos afirmar, com nosso pouco conhecimento, que a estilística de Nauro é impecável e nada deixa a desejar, comparada a de um Drummond, um Lorca, um Goethe. Só que nossos olhos acostumados a buscar sempre a distância, não conseguem ver que, entre nós, vive sua morte cotidiana (e a de todos os homens) e desta morte renasce para uma nova vida (e a vida de toda a Criação) o poeta Nauro Machado, sem sombra de dúvida tão solitário sobre a terra como uma sombra gigantesca, talvez a de Cristo pendendo da Cruz e envolvendo a Humanidade inteira.
Falamos em Estilística porque a Poesia (e toda forma artística) é um estilo de vida. E na poesia de Nauro há uma procura de solução para um problema comum a todos os homens. Ele não está buscando apenas a sua remissão; na sua (pretensa) individualidade se somam e se misturam outras mil individualidades, mil fragmentos humanos, restos de caveiras, abutres, sóis. Crianças, virgens e loucas prostitutas, ele não anseia a sua remissão, e sim a remissão do Mundo: "O choro das pedras,/ dos réus sem infância,/ dos pés amputados / sonhando sapatos."
O divino e o demoníaco, o trágico e o belo, a insânia e a lucidez, na poética de Nauro, se fundem de tal ponto, já não sabemos distinguir onde começa a divindade e onde termina o satanismo e vice-versa. Isso deve-se ao fato de ser, o nosso pensamento Ocidental, uma dualidade e querer, por isso, repartir e dividir o homem num ser duplo, numa coisa dual. E indo mais ao fundo de si mesmo, o Artista pode descobrir que o mundo "luminoso" não deve ser posto acima do mundo "obscuro", que não existe o "para cima" e nem o "para baixo", que faz, como na nossa chamada Sociedade, com que o homem use máscara para salvar a aparência. O ser verdadeiramente Real é que homem possa encontrar-se a si mesmo dentro de sua alma. Daí o voo para o Absoluto.
Daí, a compreensão de que adorar significa ajoelhar-se ante o obscuro e o luminoso, o horrendo e o belo, e adorá-los todos, pois ambos fazem parte de um Todo, somam em si toda a Criação.
No poema Verde Lar a verdade una e comum a todos é esta: "aproveitemos a maré/para a partida derradeira." Esta partida, entretanto, não é derradeira quanto à morte. Vai-se partir, mas a barreira está içada. Isto porque é para a Vida que partimos, sempre que rompemos com uma existência anterior, na qual temos vivido, seja ela primitiva, milenar, sejam reencarnações e crenças, deuses e demônios.
O que Nauro Machado faz é uma reeducação. Fazer com que o homem se dispa desta casca de um moralismo falso, de uma conduta que, embora chamada normal, é aberrante. O poeta é um vidente e Nauro é um profeta, pelo menos entre nós.
Entendê-lo não é aceitar simplesmente sua poesia como excelente. Aceitá-lo é procurar avançar, viver descobrindo em nós também a nossa verdade, coisa que poucos se empenham em fazer.
Nauro já não vive no mundo dos normais, dos bem-pensantes. Nauro está indo para o Absoluto, para o Nada, para um Imenso Vazio. Mas lá, Nauro estará entre o raros: Cristo, Buda, Hesse, Villon e tantos outros que sujaram os pés na caminhada é certo, mas que, ao partirem, já os levavam limpos, claros, radiantes.
Todavia foi na água do sofrimento, da provação, do martírio que limparam seus pés. E esta é sempre a medida para quem deseja, na vida, ser simplesmente um homem que conhece a si mesmo. Que não viemos ao mundo para representar uma farsa. Que não viemos ao claro para mais obscurecer nosso entendimento a respeito de nós próprios.
Este não é o trabalho de um crítico: é antes uma tentativa de descobrir, na Poesia, a humanidade e o espírito naureano; e para afirmar que o Nauro que podemos descobrir na Arte é um ser que já tem sua Vida Interior acima dos homens comuns, acima da mediocridade e da vileza. Há uma pureza, disfarçada em mágoa no poeta-homem-Nauro, que só os loucos e os santos conseguem distinguir.
*Jornal do Dia, São Luís: 25-12-1971
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