João Ewerton
Era meados de 1979 quando chegamos a Manaus, depois de termos feito uma turnê muito boa pelo Sul, Sudeste e Centro-Oeste, cumprindo a agenda de apresentações do “Projeto Mambembão”, criado pelo Ministério da Cultura (MinC) e pelo Serviço Nacional de Teatro, com o objetivo de incentivar os grupos de teatro independentes que não tinham acesso ao grande público. Além disso, visava levar espetáculos de boa qualidade para regiões como a Amazônica, que quase não tinham acesso a espetáculos teatrais devido aos custos de produção, incluindo passagens aéreas muito caras, devido à distância entre Manaus, Rio Branco, Rondônia e Porto Velho, e em relação ao Sudeste, onde se concentram, até hoje, as grandes produções teatrais.
O “Projeto Mambembão” selecionava peças teatrais por meio de um processo de curadoria, no qual os profissionais do Serviço Nacional de Teatro, após a leitura das propostas encaminhadas pelos grupos teatrais, visitavam os estados brasileiros para assistir aos espetáculos. Só depois formalizavam a seleção, e os grupos tinham que estar documentados para atender às exigências burocráticas para a formalização do contrato com o MinC, a fim de receberem os recursos do seu pró-labore ofertado pelo Ministério da Cultura. Além do apoio financeiro, o MinC oferecia aos grupos selecionados um apoio logístico muito eficiente, para que esses espetáculos pudessem circular pelas diversas regiões do país.
Foi um projeto tão bem-sucedido que, ainda hoje, o “Projeto Mambembão” é frequentemente citado no meio cultural como um exemplo de política pública voltada para a democratização da cultura e o apoio às artes cênicas. Por ter sido uma iniciativa inovadora e transformadora, contribuiu para a disseminação do teatro e o fortalecimento da identidade cultural brasileira.
É importante ressaltar que as apresentações dos espetáculos do Mambembão eram realizadas em teatros de excelente qualidade técnica, escolhidos pelos agentes do MinC através das delegacias regionais, que colocavam seus funcionários em campo para fazer a produção local, organizando a hospedagem e toda a logística necessária para que os espetáculos acontecessem a contento. Além disso, recebiam os grupos no aeroporto com conduções próprias, pois cada espetáculo, como o nosso, dispunha de bagagens gigantescas que sempre iam em aviões cargueiros. Esses funcionários, todos sem exceção, foram de uma simpatia e competência raramente vistas hoje nos serviços públicos federais, principalmente naqueles órgãos em locais mais afastados de Brasília. Os funcionários das delegacias do MinC, ou da Funarte, como era em Brasília, acompanhavam os grupos durante toda sua estadia no local e os deixavam nos aeroportos ao final da temporada, só saindo de lá depois que toda a logística estava concluída. Algo de que sinto muita saudade.
Outro detalhe importante é que o projeto oferecia ingressos por preços bastante acessíveis, para que o público local também pudesse ter acesso àqueles espaços, muitas vezes distantes de seu poder aquisitivo, como é o caso do Teatro Amazonas, em Manaus, do Teatro da Paz, em Belém, e do Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Esses são casas de espetáculo emblemáticas e de altíssimo padrão técnico/estrutural, onde dificilmente os grupos e o público do Projeto Mambembão teriam acesso sem a deliberação do MinC.
Eu, naquele tempo, sem conhecer nada da região amazônica central, uma vez que sou da Baixada Maranhense, localizada no início da Amazônia, coisa que muita gente esquece de que o Maranhão faz parte da Região Amazônica — aliás, o único estado que tem os cinco biomas brasileiros em seu território. Pois bem, diante do meu desconhecimento total, inclusive desse detalhe que acabei de citar, eu achava que encontraria uma “Manaus indígena” e tomei um susto ao ver, naquele tempo, a quantidade gritante de homens de terno e gravata no centro da cidade, lembrando a Avenida Paulista. Ali foi que me dei conta da Zona Franca, que naquele tempo, antes da aliança “Sino-Paraguaia” e suas muambas derramadas no Brasil por “sacoleiros”, era o grande ponto de acesso à alta tecnologia dos “utensílios modernos”. Lembro-me de que eu mesmo tinha a incumbência de adquirir um “toca-fitas autoreverso” para um cunhado meu, uma novidade incrível daquela época que ainda não havia chegado ao mercado nacional.
Minha visão de tudo sobre o Amazonas e o Brasil se modificou quando vi de perto a grandiosidade do Rio Amazonas, uma vez que, do avião, a gente vê um pouco do encontro das águas, mas não tem o impacto de quando estamos navegando em suas águas absurdamente caudalosas.
Outro grande impacto eu tive foi quando entramos pela entrada de serviços do Teatro Amazonas e, depois de nos localizarmos nos camarins, fomos para o palco, que se encontrava com a espessa cortina de veludo vermelho-bordô fechada. Ao ser aberta, ela nos revelou aquele cenário extraordinário, onde o requinte arquitetônico mixava o dourado do acabamento da decoração suntuosa com a predominância do vermelho-bordô das suas poltronas requintadas, que tomam a plateia, as frisas, os camarotes e os balcões, mostrando através da história a pomposa vaidade dos senhores da borracha no auge da sua opulência quando o inauguraram em 1896, anos depois do Teatro da Paz em Belém, refletindo a interiorização da exploração da borracha.
Um detalhe importante que convém destacar é o fato de que, naquele tempo, nós, atores, não contávamos com microfones tipo “headsets” como hoje, para amplificar a voz. Naquela época, tínhamos que fazer técnica vocal para falar a grandes públicos, em grandes espaços como o Teatro Amazonas, com capacidade para 701 pessoas, o Teatro Arthur Azevedo, em São Luís, para 840, ou mesmo o Auditório Araújo Viana, de Porto Alegre, o maior teatro do Brasil, com 4.250 lugares. Pasmem, muitas vezes fizemos espetáculos de mais de uma hora de duração, com intervalo de 15 minutos de um para o outro, ou seja, apenas o tempo de uma plateia sair e da outra se acomodar no teatro. E não ficávamos afônicos; a técnica não permitia.
Naqueles dias da temporada em Manaus, conhecemos o grande escritor amazonense, Márcio Souza, que também estava no “Projeto Mambembão” e que depois se apresentou em São Luís com o espetáculo de sua autoria e direção: “Deu Piranha no Pirarucu”, uma sátira muito bem feita sobre a cidade de Manaus. Havia uma música de melodia belíssima que canto até a data de hoje, uma música que, ao meu ver, diz muito sobre a atmosfera que envolve a metropolitana Manaus: “Porto de Lenha, tu nunca serás Liverpool, com uma cara sardenta de olhos azuis! Um quarto de flauta no alto Rio Negro pra cada sambista, paraquedista, que sonha o sucesso, sucesso sulista, em cada navio, em cada cruzeiro, em cada cruzeiro das quadrilhas de turistas...”
Dois anos depois dessa temporada do Mambembão, estive em Manaus outra vez, para realizar uma exposição de desenhos de minha autoria, numa galeria chamada “Galeria do Beco”. Nessa ocasião, a convite do meu amigo Césare de Flório La Rocca, fui visitar uma escola alternativa que trabalhava com jovens em situação de vulnerabilidade social, e fiquei encantado com aquela experiência. A escola era gerida por antigos alunos, outrora marginais perigosos, que, então, eram professores, diretores etc. O primeiro impacto que tive foi com a limpeza esmerada mantida por todos. Não havia qualquer tipo de detrito pelo chão, e os alunos mais velhos serviam as refeições para os mais novos. Uma experiência tão impressionante que me instigou a fazer uma apresentação de teatro de bonecos com eles e para eles. Para minha surpresa, essa singela apresentação me rendeu um convite tentador para treinar a monitoria da FUNABEM em Brasília, e isso não só me fez mudar para Brasília, como também mudou o rumo da minha vida, que até então era pautada em atividades na cidade de São Luís. Daí em diante, o Brasil ficou pequeno para as minhas andanças.
Voltando a Manaus agora, em 2024, encontrei a explosão desordenada daquela cidade que conheci há quarenta anos atrás. Está mudada pelas intervenções de uma Copa do Mundo, e muito mais fortalecida depois de sobreviver a uma asfixia por falta de oxigênio na pandemia da Covid-19. Acho que o meu lado indígena me prende ao Amazonas, posto que sinto muito orgulho da força extraordinária desse povo moreno de feições que muitas vezes se parecem com as orientais, dotados de uma garra e sabedoria singulares.
Diferentemente daquele tempo, a Manaus de hoje fervilha, e o trânsito se tornou terrivelmente complicado e lento nos horários de pico, enquanto o seu porto está cada vez mais acionado por um movimento frenético de todo tipo de embarcações que se possa imaginar, inclusive de “lanchas-ambulâncias” ou “postos de saúde flutuantes”, pois estamos no Amazonas, o mundo das grandes águas de Deus, que sustentam a terra, e esse “Sustento” tem todos os sentidos que se puder imaginar para a vida deste planeta.
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