João Ewerton, membro da Academia Poética Brasileira
Ainda no início da tarde, tratei de visitar o Bumbódromo, pois sua fachada está voltada diretamente para a rua Cordovil, onde eu estava hospedado, e sua nova roupagem, com a estampa magistral dos dois bois cobrindo toda a extensão dos seus sete andares, instigou-me insanamente a ir até lá conferir de perto tudo aquilo, pois eu estava tão ansioso quanto aquele grupo de jovens que anteriormente, descrevi no porto.
A arena de Parintins tem capacidade para cerca de 25.566 espectadores, foi inaugurada em 1988 e passou por uma reestruturação em 2013, transformando-se no Centro Cultural de Parintins, e está localizada bem no coração da cidade. O Bumbódromo, como é popularmente conhecido, tem sua planta baixa semelhante ao formato de uma cabeça de boi estilizada e, desde sempre, sedia o Festival de Parintins, o maior espetáculo folclórico a céu aberto do mundo.
Ao caminhar pela rua Cordovil, que, por ter a peculiaridade de estar no centro geodésico da cidade, abriga, de um lado, os moradores torcedores do Garantido e, do outro, os torcedores do Caprichoso, fica demarcado que a partir dela se encontra o lado da cidade dedicado a cada um dos dois bois.
À medida que se percorrem as ruas movimentadas, repletas de pessoas de todas as partes do mundo, o clima do festival toma conta do coração da gente, e uma particularidade chama atenção: a forma civilizada com que essa tal rivalidade dos dois bois se apresenta entre os moradores, demonstrando muito respeito e amizade entre eles. Esse sentimento, eles fazem questão de passar para os visitantes, algo bem diferente da rivalidade das torcidas de futebol. Acho que o próprio fato de a cidade não ser uma metrópole facilita essa cordialidade e simpatia no cerne dessa intricada disputa, que ultrapassou as fronteiras do Brasil.
Esse espírito fraterno tem se refletido em acontecimentos ligados aos dois bois, que comoveram não só a cidade, mas a todos que tiveram acesso aos vídeos que registraram tais momentos, como: o dia em que o boi Garantido entrou pela primeira vez no curral Zeca Xibelão, do Caprichoso, para prestar suas últimas homenagens ao "Tripa" Markinho Azevedo, falecido em 28 de dezembro do ano passado, que estava sendo velado no curral do bumbá da estrela.
Os "Tripas" do boi são os artistas responsáveis pela confecção e pela evolução cênica do boi de pano, que é a representação lúdica do boi animal, feito de fibra, espuma e pano. Os Tripas são quem dá vida aos bois durante as apresentações e são personagens criados pelo Festival Folclórico de Parintins, onde têm papel extremamente importante.
Ocorre que o eterno Tripa do boi Caprichoso, Markinho, também atuou por um período como Tripa do boi Garantido, sendo o único Tripa que animou os dois bois.
Naquele dia, num momento que transcendeu as rivalidades entre os bois de Parintins, a solidariedade e o respeito à cultura local se destacaram quando o Boi Garantido, levado pelo Tripa Denilson Piçanã, tocou o primeiro pé no chão do terreiro do tradicional rival, o Caprichoso.
Considerando que o boi de pano é uma forma animada, uma das categorias de teatro de animação, naquele momento presenciou-se uma interpretação magistral, que comoveu a muitos, pois víamos a figura do boi Garantido "respirar" emocionado, erguer a cabeça e reconhecer o ambiente do rival de forma absolutamente respeitosa, não por temor, mas por respeito e igualdade.
Após esse gesto repleto de dramaticidade e plena humanidade, Denilson conseguiu mesclar a figura do boi de pano com uma nuance transcendental da alma humana, refletindo sua própria alma. Como Tripa, talvez, naqueles breves segundos, tenha refletido sobre sua condição humana, imaginando-se um dia, inerte, no lugar em que o Markinho agora se encontrava, onde um outro Tripa, assumindo seu lugar e a alma do Garantido, levaria seu querido boi para uma despedida.
Talvez tenha sido esse pensamento, ou algo ainda mais comovente, que fez o Tripa manter o boi de pano parado, voltado para o local do velório, sem coragem de dar o primeiro passo.
Apenas alguns segundos após esses gestos cerimoniosos, Denilson inclinou a cabeça do boi até próximo do chão, como em um ato de sincera reverência, e só então deu os primeiros passos, seguindo solenemente até o local onde se encontrava a urna com o corpo de Markinho. Ali, ele não emprestou a alma ao boi de pano; o comportamento do boi demonstrou que ele dera a sua própria alma ao boi, comovendo todos os presentes e os que assistiram ao vídeo pela emoção transmitida através de uma manipulação magistral. Os gestos eram tão perfeitos que o boi Garantido parecia "respirar" emocionado ao acariciar com o toque de sua cara o rosto de Markinho através do vidro da tampa da urna. Algo realmente comovente, que apenas um mestre em animação, como são os Tripas dos bois de Parintins, consegue transmitir.
Após esse fato, a diretoria do Boi Caprichoso agradeceu pela atitude do Garantido através de um comunicado oficial:
"Unidos pela paixão comum pelo folclore e pela tradição, transcender as rivalidades se torna uma forma de honrar a memória do eterno Tripa do Boi Caprichoso. Agradecemos ao Boi Garantido por este ato de solidariedade, que ressalta a importância de valores como união e respeito em momentos tão delicados. Juntos, como comunidade parintinense, continuaremos a preservar o legado deixado por Markinho Azevedo", dizia a nota da agremiação.
Outro momento comovente foi quando os bois Garantido e Caprichoso se encontraram para a despedida de um dos maiores nomes da história do Festival de Parintins, e o Boi Caprichoso cantou as toadas do Garantido para homenagear Paulinho Faria, o "Garotinho de Ouro", como era chamado pela nação vermelha e branca.
Sim, o Boi Caprichoso cantou toadas vermelhas para homenagear o ex-apresentador do Boi Garantido, falecido em 22 de fevereiro de 2021, vítima de complicações da Covid-19. Pela primeira vez na história, o Boi Caprichoso cantou toadas do Boi Garantido para saudar o cortejo quando este passou em frente à sua sede. De forma impressionante, aquele momento emocionou a todos, caprichosos e garantidos, pelo fato de o “contrário” cantar o outro, tornando as festivas canções solenes como uma missa de réquiem, plena de humanidade.
Com meus pensamentos indisciplinados, que pulam feito macaquinhos de galho em galho, segui até diante do Bumbódromo, onde contemplei a imagem titânica dividida simetricamente, tendo de um lado o Caprichoso e do outro o Garantido, como uma forma de demarcar seus territórios naquela arena feita exclusivamente para eles dois.
Pelo fato de Parintins não ser facilmente acessada por carros, encontramos um aglomerado gigantesco de pessoas, contudo, não enfrentamos o excesso de veículos, o que facilita muito o passeio pelo centro da cidade e entorno do Bumbódromo. Agradecendo por isso, depois de contemplar a imponente imagem estampada na fachada da arena, segui admirando os altos-relevos esculpidos no muro, onde artistas locais retratam mitos e outros temas do Amazonas. Convém ressaltar que os maiores escultores realistas do Brasil se encontram em Parintins, haja vista o trabalho que Rossy Amoedo vem realizando em muitas capitais e cidades de destaque no Brasil inteiro, criando cidades temáticas repletas de esculturas épicas e hiper-realistas, desenvolvidas com técnica autoral.
Ao contornar a arena pela rua Domingos Prestes, alcancei a rua Batucada, que segue pela lateral da arena até a rua Paraíba, onde já estavam preparadas as vedetes do festival: as gigantescas alegorias do Garantido e do Caprichoso, posicionadas próximas à entrada da arena de espetáculos. É interessante notar que a entrada do setor do Garantido e a do Caprichoso partem separadamente das áreas reservadas para cada um deles e adentram o Bumbódromo através de dois portões gigantescos, separados por um grande trecho de muro. Contudo, essas duas entradas se fundem no grande palco, assim como a rivalidade se funde em relação amistosa entre os parintinenses, ou em momentos de comoção dos dois bois, aquelas entradas separadas se fundem no altar do faz-de-conta, pois naquele palco quem habita é a grandiosa magia da arte, essa energia universal que transcende todos os princípios da mentalidade humana, a qual, naquela arena, é fruto da energia implacável e inesgotável de todos os deuses e xamãs do infinito panteão amazônico, onde Baco não rege esse teatro, assim como Thespis, não será o seu primeiro ator, pois, bem antes que a Grécia, os nossos povos já se manifestavam culturalmente.
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