Nota do editor: Os versos de Rogério Rocha sobre Nauro Machado são uma rica troupe de imagens e sensações que capturam a essência do poeta em movimento. É isso que eu senti. Porque Rocha utiliza a metáfora do corpo como um copo translúcido e brilhante, sugerindo a transparência e a luminosidade da presença de Nauro. Rogério Rocha parece gravar imagens do poeta através de seus olhos líricos; a do corpo que se adapta ao fluxo de um líquido, evoca exatamente isso: a fluidez e transitoriedade de maneira excepcional.
E como um mágico o imortal da APB, Rogério Rocha, integra Nauro Machado ao ambiente, ao cenário, aos sons, aos brilhos, a chuva, ao céu cinzento, ao cheiro de marulho, à ruinas da cidade; e o faz mover-se com a mesma naturalidade de um rio, parafraseando a passagem do tempo e a impermanência da vida, carregando galhos secos, flores mortas, restos ribeirinhos de barro que, invés de tornar-lhe mórbido, traz vida a milhões de organismos vivos alimentados por esses escombros.
Esses versos, como uma câmera imersa nos olhos, Rogério, repito, captura um Nauro Machado muita mais que uma simples mortal e extrai dele a profundidade de psiquê e arranca a materialização da alma poética de um Nauro (quase) imperceptível a olho nu, pois se faz necessário "adentrar as salas desertas que afloram no além-palavra". Perfeito, Rogério Rocha. Excelente poema.
Nauro (poema extra)
Por Rogério Rocha
Eu o vejo descendo a pé
a sempre velha Rua de Nazaré...
Os velhos prédios, as velhas pedras
acenam para ele no passar infindo.
Leva à mão direita
um guarda-chuva negro, grande
e pontudo...
Na mão esquerda uma pasta
(que ao poeta nada basta).
Na mão direita seu guarda-chuva
(guarda-preces, guarda-dores, guarda-escárnios),
tal qual bengala, margeia a beira,
feia, fria e dura beira de calçada,
como se escrevesse, como se traçasse,
nela e com ela, uma outra linha,
paralela, imaginária...
ponteando o seu passar.
Nauro desce a Praia Grande.
Seu corpo é um grande copo,
corpo translúcido, brilhante,
que cabe no fluxo de um líquido
que cai no vazio vazante
do continente, conteúdo que espuma
da cabeça aos pés e se banha no rio
do temporário, que o espera sobre
as mesmas mesas dos mesmos bares,
refúgio presente, pleno sacrário
de tudo que sorve a dor e proclama
suas relíquias no objeto incendiário.
Vejo daqui, desta sacada,
bem de cima, bem do alto,
tua cabeça descampada.
Vejo da sacada deste velho casarão.
Tua cabeça é como um vão.
A tua sombra perene,
teus versos enchendo a rua,
subindo aos ares, lambendo o chão,
onde correm passos que varrem
a paisagem, paisagem solene
das pedras que dormem nuas.
Silêncio, silêncio meu poeta!
Estou afeito a curtir pensamentos
que escrevem mãos caladas.
Vago também pelos vales e valas,
pelas vagas onde ecoam os berros
de tua voz grave e trágica.
Ecoa no espaço azul do sereno,
vige ainda no tempo o teu dito.
Oh! poeta que me ofusca!
Tu, poeta, és quase adivinho,
És quase profeta na encruzilhada.
Tua fala, teu andar desconcertante,
teu apuro com a essência da palavra,
prisão ferrenha, destino amargo
porto incandescente.
Em teu ombro carregas, cansado,
o altar de Apolo.
Ainda assim, celebras Dionísio.
Oh! tu, amena criatura! Solitário ser
que transita em nossas ruas escuras,
confiscando as posses desse sítio falido,
confundindo-se com a fauna efêmera
das multidões desvanecidas
que, pouco a pouco, sucumbem
à dilaceração furiosa do teu logos,
semente negra que se espalha
sob os restos de tudo que jaz,
perfumando com ácido aroma
nossa triste e perpétua mortalha.
Dentro de ti, de tua pasta,
não sei o que carregas.
(Talvez carregue mágoas!)
Talvez guardes nela poemas novos,
poemas velhos, poesias enjauladas.
Na tua pasta só cabe a tua alma.
Há pouco espaço para o ser que não és.
Assim vai, descendo o poeta,
sempre a pé,
a mais que velha Rua de Nazaré.
Poeta nefasto, poeta nefando.
Música trágica tocando ao fundo,
qual trilha sonora do meu desencanto.
Uma criatura qualquer, filha das ruas,
passante sem rumo, o saúda com palavras
que, à distância,
não posso compreender.
Vai, rua abaixo, o poeta,
esse sismo ambulante.
Dele saem gotas frias de suor,
banhando sua carne inquieta,
sua magnitude metafísica.
Poeta mal-visto, mas poeta que se guarda.
Poeta sem lugar, posto que abarca
o tudo e o nada.
São Luís é pequena, São Luís é parca.
A ilha é pequena, é pouca, esquálida.
Não preenche o vazio de sua estrada,
pois falece antes, apodrece em suas mãos,
sem chegar ao profundo, sem abrir as portas
e adentrar as salas desertas que afloram
no além-palavra.
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