Socorro Guterres
Estilhaços cobrem as ruas da cidade abandonada. Centenas de prédios destruídos com suas fachadas escancaradas ao vento, que balança trapos do que um dia foram belos cortinados. As vidraças das janelas destroçadas são bocas abertas gritando ao mundo um pedido de socorro. A cidade portuária caiu sob o domínio do invasor cruel. Nada humanitariamente foi poupado: hospitais, escolas, universidades. Milhares conseguiram fugir dessa zona mortífera, mas alguns resistiram, por bravura, amor ou necessidade. Eis aqui a história de Derek e Ludmila, ficcionada nos dias cruciais da invasão inimiga. Nascidos nessa outrora rica região, conheciam-se desde a infância, nos cultos ortodoxos seculares.
O tempo da narrativa é o século XXI, contudo o horror e a ganância são os mesmos dos combates medievais, bem como das grandes guerras mais recentes que quase dizimaram a humanidade. Derek com seus grandes olhos azuis acompanhava a movimentação política estampada no noticiário e temia um desfecho fatídico. Já a linda Ludmila dos loiros cabelos e olhos igualmente azuis não admitia essa hipótese. Acreditava que os homens do poder se entenderiam, e então o casal, na faixa dos seus vinte anos, logo estaria concretizando o sonho do casamento em uma das esplêndidas igrejas de cúpulas douradas da cidade em que viviam. As preocupações constantes advindas da instabilidade política não impediam as ações do cotidiano. Derek e Ludmila exerciam a função de paramédicos e trabalhavam num grande hospital. Nos momentos de lazer voltavam-se para o acolhimento da família, para os passeios nos encantadores parques e ainda para a apreciação do mar que a isso tudo emoldurava, mesmo sob o frio mês de fevereiro do rigoroso inverno europeu. Para o casal enamorado, a expectativa se resumia nas bodas tão planejadas e nos filhos que certamente viriam para iluminar ainda mais os dias felizes. Desse modo, evitavam falar sobre o conflito iminente. Os dias corriam quietos, silenciosos, como a calmaria que antecede a tempestade.
No meio da manhã um estrondo. O dia chuvoso assemelhava o som a um trovão. Ludmila correu em direção ao ambulatório infantil, seu setor de especialidade, procurando acalmar as crianças que se assustavam com a continuação do barulho ensurdecedor. Ao longe, pelos límpidos vidros das janelas, agora estremecidos, a visão da fumaça e do fogo que se alastrava nos blocos de apartamentos a poucas quadras de distância, revelavam a realidade: o início da invasão estrangeira. Em minutos tudo se transformaria. Derek imediatamente se deslocou, na ambulância em que prestava serviço, para as áreas atingidas. Assim, ele teve a primeira imagem da destruição, sob o tinido estridente das sirenes alarmantes que lembravam à população o refúgio para salvaguardar vidas. Há tempos a cidade progredia e as obras se destinavam à comodidade e à modernidade. Os antigos abrigos antibombas eram poucos e foram deixados ao abandono. Ludmila sabia agora que o inferno tão distante da sua paradisíaca morada, mostrava nas labaredas que subiam no horizonte a proximidade implacável. Logo seu local de trabalho estaria lotado, pois era o centro médico que atendia a região primeiramente atacada. Em pouco tempo, Derek chegava liderando comboio de ambulâncias, carregadas de moribundos e feridos. Jovens, crianças, idosos. Não havia prioridade para a vida, só o sofrimento e a dor adentrando as portas do hospital. Em vinte dias de terror o cerco se fechara em torno da cidade. Derek e Ludmila mal se viam, nos instantes do entregar e receber as vítimas do confronto indesejado, indecoroso, odioso.
Rapidamente as pessoas ficaram desassistidas, sem água, eletricidade e o tão caro bem da comunicação dos celulares. Os prédios desmoronavam em meio aos incêndios. As prateleiras dos supermercados já desprovidas, sofriam o ataque de vândalos, por vezes antigos plácidos moradores, agora em desatino voltando à idade da pedra.
Ludmila, porém, no vai e vem das ambulâncias aterrorizava-se com o número menor delas, a cada dia do avançar do conflito. O hospital estava sendo evacuado em caravanas de entidades assistencialistas internacionais. Em poucas horas todos deveriam estar fora da zona de destruição seguindo o corredor humanitário que se abriu temporariamente. Então, ela aguardou desesperadamente a chegada da última excursão de resgate promovida por Derek, ainda que sem nenhuma segurança das forças bélicas. Os minutos se esgotavam para a partida e o amado não retornava. Subitamente um veículo militar descarregou corpos mutilados. Ela reconheceu uniformes paramédicos, em meio ao sangue que escorria das macas. Sentiu o escurecer da visão, em torno de si pessoas corriam em desencontros de uma grande solidão, de uma grande falta. Reclinou-se para prestar atendimento e encontrou o olhar azul, já esmaecido, de Derek. Um instante restava ainda. Um pequeno sopro numa frase ofegante um eu te amo infinito traduziu. A partida seria sem Derek, ele se antecipara, se esgotara. No esforço de salvar vidas alheias, esquecera-se da própria, tragada por grande estilhaço do carro em que trabalhava. Não havia mais tempo, Ludmila viu o corpo querido ser envolto em um plástico negro e empilhado em meio a tantos outros. Ela deu a mão a uma criança maior, carregou no colo outra pequenina e partiu num caminho sob as chuvas das cinzas do seu viver.
Essa história continua, da forma que o leitor imaginar. E é tão real quanto inventada, pois as notícias sobre ela sempre estão a chegar, no dia a dia invasivo que mostra o infortúnio pairando em zonas de guerra que continuam sempre e sempre a nos atordoar. Enquanto não aprendermos a solidificar a paz, fragmentos assim nos farão parar e pensar.
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