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editor-sênior, jornalista Mhario Lincoln
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João Ewerton: “Águas e Folhas do Amazonas” - Reflexões e Memórias. (Episódio 4)

João Ewerton é membro-efetivo da Academia Poética Brasileira.

15/08/2024 10h04 Atualizada há 3 semanas
Por: Mhario Lincoln Fonte: João Ewerton
Arte: MHL
Arte: MHL

*João Ewerton

 

Todas as vezes em que visitei Manaus, me hospedei em hotéis no centro antigo da cidade, o que, na época, há precisamente 40 anos, era algo muito tranquilo e de boa qualidade em todos os aspectos.

Diante dessas experiências bem-sucedidas, desta vez, busquei essa referência para localizar um hotel onde eu pudesse ficar bem próximo ao porto de Manaus, de onde sairia para Parintins na lancha a jato 'Madame Cris' — nome que, confesso, me causou certo preconceito, pois o termo 'madame' está na minha memória como algo comum às 'casas de tolerância' nas obras de Jorge Amado e Dias Gomes. Contudo, ela é simplesmente a melhor de todas as lanchas desse gabarito em operação no rio Amazonas. Saímos uma hora depois de uma dessas que ia para o festival e chegamos dois minutos antes dela no porto de Parintins.

Todavia, antes de conhecer e embarcar na Madame Cris, eu estava em busca de uma experiência desconhecida, visto que não conhecia o porto de Manaus e muito menos sua dinâmica, ou os procedimentos que deveria seguir para não perder o embarque para Parintins, uma vez que era dia 27 de junho, o festival começaria no dia 28, e não haveria como chegar ao evento caso eu perdesse o embarque na Madame Cris. Esse alerta me foi dado pelas atendentes do serviço virtual das Lanchas a Jato de Manaus, que, incansavelmente, me solicitaram para estar no porto, precisamente no píer da companhia, pelo menos duas horas antes do embarque.

Assombrado pelo desconhecido, como ocorre com todos diante de aventuras desconhecidas, busquei o centro de Manaus e um hotel bem próximo ao porto, pois aproveitaria a tarde para ir a pé até lá e fazer o reconhecimento das suas dependências, protocolos e, principalmente, me inteirar dos procedimentos da Madame Cris, para que, na madrugada seguinte, eu estivesse tranquilo e certo do tempo que levaria para chegar até ali e embarcar para o 'Boi-Bumbá' de Parintins.

A viagem do aeroporto até o hotel fiz em um Uber dirigido por um jovem grandalhão em estatura e circunferência, que me vendia as qualidades de Manaus com uma empolgação do tamanho dele, ou maior. Na hora, pensei em como eu gostaria que os taxistas do aeroporto de São Luís falassem bem da nossa cidade como aquele esfuziante rapaz.

Quando nos aproximamos do centro antigo da cidade, comecei a me preocupar com o hotel que eu havia escolhido, porque o meu amigo motorista teve que fazer alguns ajustes de rota e pedir informações a alguns amigos via celular na tentativa de localizar o bendito hotel de nome de cidade italiana, que prefiro não mencionar aqui, por motivos que descreverei a seguir.

Depois de muitos altos e baixos, ladeira acima, ladeira abaixo, becos e travessas percorridos, o meu empolgado motorista do Uber parou o carro e me apontou o dito hotel à direita, diante da minha porta. Paguei, agradeci, desci do Uber e entrei no hotel. Até então, na portaria, tudo beleza, mas quando abri o quarto, me deparei com um cenário de filme distópico: o quarto não tinha nem uma mesa de apoio, mesmo que fosse daquelas de plástico de bar de fim de rua. A coberta da cama era de cor amarronzada, cor de capivara enlameada, e estava tão desgastada que parecia um cobertor de morador de rua, daqueles marrons, que o povo chama de “peleja”, porque quando cobre a cabeça descobre os pés. Um cobertor daqueles, usado há meses no chão batido, cheio de terra e de fuligem, com certeza estaria em embate acirrado com aquela coberta de cama.

Eram mais de oito da noite, e eu quis ter um “ataque de pelanca” e descer o barraco lá na portaria, mas, intimidado por não conhecer o lugar e por não saber se havia hotéis bons e disponíveis por perto, uma vez que os encontrados nos sites da Trivago, etc., não disponibilizavam telefones para contato, desisti. Além disso, me informaram que o acesso de Uber por ali era mais fácil chamando mototáxis, o que me fez desistir, porque acho que a moto é uma pedrada com ignição eletrônica, um voo sem asas e um “morto” sem o “r”. Por isso, optei por assumir o espírito cristão da compreensão e da mansidão e passar a noite ali. Para tanto, voltei à portaria para pedir que trocassem o enxoval da cama, para que eu pudesse pernoitar ali.

A imagem que me veio naquele momento foi do meu querido amigo, o ator Jorge Dória, que certa vez, quando eu dirigia o Teatro Municipal de Valença, Rio de Janeiro, foi fazer a apresentação do seu espetáculo “A Presidenta”. O empresário dele, o Abílio, pediu para que eu não reservasse hotel para eles, pois, como Valença fica a apenas duas horas e meia da capital, eles voltariam depois do espetáculo, o que tornaria a produção mais barata.

Acontece que, quando Jorge Dória reconheceu Valença, lembrou-se de que havia morado lá em 1936, quando seu pai foi o comandante da Remonta, hoje o Batalhão de Infantaria Tenente Amaro. Diante dessa grata surpresa, depois do espetáculo Dória decidiu não voltar para o Rio com o elenco, mas ficar em Valença para visitar o quartel do Exército no dia seguinte. Saí com Dória por Valença à procura de um quarto de hotel e não encontramos senão um quarto quase igual ao que eu me deparei em Manaus, ainda que fosse num hotel bem melhor. Naquela época, eu nem pude oferecer hospedagem em minha casa, porque eu morava em um hotel. Mas, para minha surpresa, Dória, humildemente, como sempre agia, bateu no meu ombro e me disse: — Eu vou dormir nesse quarto, João. Eu não vou morar aqui! É só por uma noite, e, além do mais, amanhã eu vou ter recordações dos momentos incríveis que vivi aqui com a minha família.

Foi exatamente essa lembrança que me veio naquela hora em Manaus e me fez ficar quieto naquele quarto depois que trocaram o enxoval.

Quando eu pensei que o pior era a aparência e a falta de conforto do quarto, o pior veio no decorrer da noite, pois não demorou para que começasse uma apresentação de música ao vivo num bar em frente ao hotel. Se não fosse a péssima qualidade do som, eu diria que era o trio do “Chiclete com Banana” tocando funk dentro do travesseiro.

Arrrreee!!!!!!

Os acordes daquelas músicas bregas e péssimas pareciam ter o código secreto para abrir a porteira do inferno, liberando toda sorte de barulhos esdrúxulos, repugnantes e inconvenientes. Disputando com aquele lixeiro musical, havia pessoas bêbadas gritando em conversas sem noção ou mulheres histéricas gemendo em alto brado ao venderem seu sexo para seus biscates. Considero esses gemidos, sinceramente, como os ruídos mais deprimentes que um ser humano é capaz de emitir, ainda mais quando fazem esses escândalos absurdos e mal fingidos, denunciando que já não sentem mais nada por falta de tato naquela zona de guerra devastada. Pior ainda, essas mulheres pareciam se revezar nos quartos, em intervalos de poucas horas, entre o escândalo de uma e o despropósito de outra, durante a noite toda.

Às seis da manhã, eu estava na portaria, disposto a recuperar o dinheiro da segunda diária que me haviam cobrado antecipadamente. O infeliz jovem da portaria, que, enquanto estava tudo bem, era uma pessoa com uma personalidade, se tornou um demônio, invertendo todas as palavras que eu lhe dissera para "se livrar do B.O." enquanto falava ao telefone com o seu superior.

Resultado: saí daquela espelunca sem ter meu dinheiro restituído, preferindo minha tranquilidade a perder meu dia por conta de uma diária. Eles insistiam que a devolução só seria realizada se a reserva tivesse sido feita diretamente com a agência, mas eu, infelizmente, a fiz diretamente por telefone ao chegar no aeroporto. Para meu azar, esse hotel era o único que disponibilizava o contato telefônico. Foi tanta má vontade por parte do rapaz do hotel e do chefe dele que achei que, quando o dinheiro fosse devolvido, viria amaldiçoado. Pensando assim, achei melhor que eles me pagassem com a avaliação que fiz questão de publicar no site que divulga aquela cripta de belzebu.

Eram sete em ponto quando fiz o check-in no outro hotel, na mesma rua, onde contei com um excelente tratamento, equipamentos novíssimos, bem cuidados, e muito silêncio para descansar até a tarde, quando terei que fazer a visita à digníssima Madame Cris.

 

14 comentários
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joao ewertonHá 3 semanas São LuísManinha Bastos, nem tinha visto o nome da embarcação. rsrs Só que a Madame Cris é uma lancha pequena de alta velocidade, enquanto a da ilustração é do modelo tradicional.
joao ewertonHá 3 semanas São LuísAlcides Parron acho que você não entendeu o que eu escrevi. Não citei estísticas ou cogitei situações, apenas me ative a narrar um fato que aconteceu comigo. Fato vivenciado, não pesquisado. Entendeu agora?
joao ewertonHá 3 semanas São LuísJames Bartô, ator e manequim profissional, o nome artístico Jorge Dória segundo ele mesmo me falou, quem o batizou foi o ator, Nestor de Montemar. Não lembro quando, nem qual foi o eleco que os dosi fizeram parte naquela ocasião.
joao ewertonHá 3 semanas São LuísLuciana del Vecchio boa dica! Dória é referência para todos que fazem teatro no Brasil.
joao ewertonHá 3 semanas São LuísLuís Mario não tão de menos, porque faz parte do contexto todo. rsrs
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Sobre COLUNISTA JOÃO EWERTON
Um dos mais aplaudidos roteiristas de cinema da atualidade, o escritor, designer gráfico, diretor e pensador das artes de representar, dá ao Facetubes, a honra de compor seu quadro de colunistas, o que o faz, em altíssimo nível.
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