João Ewerton
Existem momentos na vida em que tudo parece resolver acontecer ao mesmo tempo.
Diante de uma corrida pelas últimas vagas nas lanchas com destino a Parintins, com muita dificuldade consegui comprar minha passagem de Manaus para Parintins, com saída prevista para as 4 horas da manhã do dia 27 de junho, um dia antes do início do festival. No entanto, para complicar minha vida, recebi uma intimação para uma audiência judicial às dez horas da manhã desse mesmo dia, a qual, de forma muito simpática, como é de praxe da justiça brasileira, informava gentilmente que, caso eu não comparecesse, seria conduzido de forma coercitiva. Toda essa delicadeza de trato porque eu era apenas testemunha no processo. Imagino como é tratado um réu.
A tal audiência ocorreria num horário em que eu estaria a bordo da lancha Puma V, a seis horas de viagem de um total de oito horas, ou seja, já nas proximidades de Parintins. Contudo, ainda que houvesse a possibilidade de participar virtualmente da audiência, por não conhecer o sistema de transporte do Amazonas, eu não tinha garantia de contar com um sinal de Wi-Fi seguro em pleno rio Amazonas, pois a experiência que se tem nas estradas brasileiras é tenebrosa. Todavia, ainda que houvesse um bom sinal de internet, não seria nada confortável estar sentado num banco de passageiro ao lado de desconhecidos, participando de uma audiência judicial.
Por esse motivo, decidi mudar o dia do meu embarque para o dia 28, o que consegui a muito custo, porque a demanda para esse roteiro no período do festival de Parintins é insanamente concorrida e cara. Devo elogiar aqui a competência e a velocidade com que o serviço online da “ajato”, mesmo com todas as limitações do período, conseguiu me realocar para a lancha “Madame Crys”, já citada em outros episódios.
Mas, antes de continuar a contar minha jornada pelo Amazonas, preciso falar um pouco sobre o motivo que me envolveu nessa tal audiência.
Trata-se de uma denúncia que fiz sobre a dilapidação de uma coleção de gravuras que o governo do estado do Maranhão adquiriu da viúva do escritor Arthur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo), num lote de objetos pessoais e obras de arte que representavam a memória desse importante dramaturgo brasileiro.
É importante destacar que o governo foi procurado pela viúva de Arthur Azevedo, que decidiu vender o acervo dele por estar enfrentando uma crise financeira, e, aproveitando-se desse estado crítico, o então governador do Maranhão, senhor Luis Domingues (1908-1912), desde o início da negociação, teve uma postura de menosprezo pelo acervo de Arthur Azevedo, coisa muito própria desses políticos espertos onde não deviam e verdadeiros energúmenos, que, por má-fé, cultivada na falta de conhecimento e ambiência cultural, menosprezam a memória e o patrimônio cultural. Assim, com esse típico espírito sombrio, usando do desespero da viúva, foi fazendo ofertas cada vez mais baixas até chegar a um valor quase irrisório, quando fechou a compra do acervo. Para o senhor Luis Domingues, essa que era uma das principais coleções de gravuras da América Latina não tinha valor algum, e ele acabou comprando por obrigação, sob pressão do nome de Arthur Azevedo, e para se ver livre da sua viúva, a senhora Carolina Adelaide Lecouflé, que era artista gravadora formada na França.
Só para situá-los um pouco sobre a importância dessa coleção, o acervo inicial contava com aproximadamente 23.130 (vinte e três mil cento e trinta) obras, entre gravuras, pinturas a óleo, retratos e desenhos. Obras de vários artistas e gravadores europeus dos séculos XVII, XVIII e XIX, como Rembrandt, Rubens, Monet, Albrecht Dürer, Ticiano, Marcantonio Raimondi, Paul Veronese, François Boucher, Jean-Honoré Fragonard, dentre outros, em técnicas de gravação como buril, ponta-seca, maneira-negra, água-forte e litografia, criando obras que retratam a mitologia antiga, paisagens, costumes e cenas religiosas. Devido à grande quantidade de obras e artistas presentes no acervo, a coleção subdividiu-se em temas, como: mitológicas, religiosas e brasilianas.
O que me motivou a encaminhar uma notícia-fato ao Ministério Público sobre essa coleção foi o descaso com que vem sendo tratada nesses 124 anos em que se encontra em poder do estado, sem nunca ter sido preservada como deveria. Posto que, das 23.130 peças do acervo, restavam apenas 11.600 (onze mil e seiscentas) até o último inventário realizado pela curadora Maria Helena Duboc, na década de 90. Entre essas peças do acervo, havia também 400 (quatrocentas) pinturas dos principais pintores brasileiros do século XIX, como Parreiras, Amoedo, etc., das quais restam apenas 50.
Eu fiz a denúncia para que fosse solicitado um inventário, sabendo de todos os dados, mas entendi que precisava ser tomada uma ação pelo poder judiciário para que o estado agisse da forma correta e fizesse o levantamento e o tombamento, a fim de evitar que o restante das gravuras desapareça por furto ou por falta de preservação, como vem ocorrendo nesses 124 anos em que as obras estão nos acervos do estado. Afinal, é um acervo muito importante, com peças de artistas que não constam nos principais museus brasileiros.
A notícia-fato foi acatada e, por falta de qualquer retorno das informações solicitadas à Secretaria de Cultura do Estado do Maranhão, tornou-se um inquérito cível, depois que a promotoria fez uma visita surpresa ao prédio da curadoria, onde a coleção se encontra, e se deparou com um cenário pavoroso: uma sala completamente tomada por umidade e infiltrações, onde parte do acervo se encontrava em estado avançado de decomposição devido à falta de cuidados. A própria assessora do promotor relatou que, para conseguir visitar a sala, teve que usar uma máscara especial de carvão ativado, devido ao odor insuportável do recinto.
Após essa auditoria, o promotor condenou o estado a criar um espaço próprio para esse acervo, dar continuidade ao processo de restauro, que foi interrompido há muitos anos, e criar um museu para que o acervo possa ser visitado pela população, principalmente os estudantes do ensino fundamental e médio.
Voltando a Manaus, por causa dessa audiência, fui obrigado a permanecer no quarto do hotel, de onde participei tranquilamente, e, no final, tudo transcorreu bem. No entanto, a audiência ainda não foi conclusiva, e o juiz marcou uma nova sessão, que será totalmente presencial, definida para o dia 4 de setembro próximo, no fórum de São Luís.
Finalmente, na madrugada seguinte, fui ansioso para o porto de Manaus para embarcar na Madame Crys. Como sempre faço em viagens, por medida de precaução, chego um pouco antes da hora marcada, pois prefiro nunca arriscar chegar muito em cima da hora, sabendo que, quando há margem de tempo, podemos evitar muitas situações complicadas.
Preciso comentar que a suntuosidade do rio Negro se sente logo que se caminha pela calçada da avenida Lourenço Silva Braga. O gigante liquefeito cintila sob o efeito da iluminação pública e dos diversos pontos de embarque, ou das embarcações abundantes, muitas delas gigantescas, aglomeradas junto aos múltiplos pontos de embarque. Os pontos de luz fazem sentir a imponência do magnífico Rei Negro, com suas águas inquietas, quase se assemelhando a um mar, sem perder o ritmo forte de movimento constante rumo à foz, como se tivesse pressa de chegar ao mar, abraçado e absorvido pelo seu gigante irmão, o Amazonas.
Aquele movimento constante, que nunca se repete, faz as águas escuras se chocarem delicadamente contra as embarcações, assim como contra as paredes do cais ou nas rampas de acesso aos pontos de embarque, provocando um suave ruído, característico das águas abundantes em qualquer parte do planeta. É como um fenômeno que se replica por algum princípio quântico que ainda não nominamos, mas que nos faz admirar, e, ao mesmo tempo, temer as águas, como se teme uma fera que não podemos vencer pela força, nem sabemos adestrar.
Esse aspecto misterioso, ampliado pelo clima da madrugada refletido nas luzes artificiais, me faz meditar sobre os segredos e histórias escondidos, aprisionados e guardados no fundo daquelas águas extraordinárias, que são implacáveis com aqueles que nelas tropeçam e sucumbem em seus cursos.
Envolto nessa atmosfera mística, cheguei ao píer coberto da Madame Crys, onde ainda não havia nenhum passageiro aguardando. Aos poucos, eles foram chegando, e, em meia hora, já estavam todos ali. Foi então que percebi que a pessoa mais velha naquele local era eu.
Todos que estavam ali eram jovens, em busca da folia do festival, com suas múltiplas festas diuturnas durante todo o fim de semana do evento no bumbódromo. Enquanto isso, eu ia em busca de mais conhecimento técnico sobre a carpintaria dos mega espetáculos. Aliás, minha própria escolha de viajar por via fluvial tinha um sentido de pesquisa de trabalho, pois estou no processo de fazer um documentário sobre a vida do meu avô paterno, e viajar pelo rio, de Manaus a Belém, significava refazer os passos dele no início do século passado, quando ele, como "guarda-livros" das Casas Inglesas de São Luís, Belém e Manaus.
Mas esse assunto é muito rico e pouco conhecido, por isso, vou deixá-lo para o próximo episódio.
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