Socorro Guterres
Graduada em Odontologia pela Universidade Federal do Pará.
Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Mestra e Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
As paredes pedregosas subiam ao redor do imenso lago de águas doces, sumidouro que os maias acreditam sagrado. Como cheguei nesse local sozinha, na aventura do desbravar? A agência turística enviara uma foto de esplêndidos cenotes na Península de Yucatan e adormeci sonhando com esse roteiro. Num passe de mágica eu estava lá, sem guia na longa trilha, conhecendo a essência da natureza e a cultura do povo maia.
Decerto que Toh, o pássaro azul, me conduzia num canto hipnótico tal qual um flautista lendário. Passei por velhas fazendas e também por cabanas de tetos de palha, mas esses recantos nebulosos não sedimentaram lembranças, até que surgiram os límpidos olhos d'água, cada vez maiores e cristalinos, a brotarem lágrimas dos deuses que, certamente, ainda choram pelas terras perdidas às invasões espanholas e, posteriormente, aos milhares de turistas que buscam conhecê-las. Contudo, no meu lúdico caminhar só havia a companhia de Motmot, a tal ave turquesa.
A degradação de rochas calcárias fez emergir as águas subterrâneas, assim como no sonho emergem os desejos mais ardentes. Acreditava-se que essas piscinas naturais eram portais para a vida após a morte e no onírico flutuar em que eu estava, em sono profundo, quem sabe estivesse nesse limiar?
Tentava não escorregar pelas pedras e alcançar o azul do poço, no abismo circundado de vegetação exuberante. Despi-me para entrar nas águas, numa repetição de ritos antigos em que o líquido vital levava à comunhão com as divindades. Na maioria das religiões a água é um símbolo etéreo. Cristo nos disse ser Água Viva e em cerimoniais do batismo a água é passagem para uma outra vida, a vida de graça. Assim, entrei no cenote, como a mergulhar na vida de Deus, na essência daquilo que buscamos compreender e alcançar. Estava despida de tudo no encontro ancestral, remontando ao início.
Subitamente alguém recolhe a minha mão caída do leito, abro os olhos e me deparo com a tela em frente a minha cama, a qual retrata intensa cachoeira que despenca um barquinho sobre a cômoda de um quarto. Queda d'água que adentra por estranha janela entreaberta, de cortinas carmim, esvoaçantes, em noite de luar. Tendo ainda em destaque enigmático pássaro de bico longo e colorido, no surrealismo ilógico do sonho ou na realidade absoluta. Submergi do inconsciente na clareza da manhã que já ia alta. Alguns fios d'água do cenote traziam memórias esparsas. Olhei o roteiro turístico na cabeceira ao lado e circundei Yucatan. Ela me aguardaria.
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