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“Águas e Folhas do Amazonas” – Reflexões e Memórias. (Episódio 8)

João Ewerton é membro efetivo da Academia Poética Brasileira

13/09/2024 às 17h23 Atualizada em 13/09/2024 às 18h02
Por: Mhario Lincoln Fonte: João Ewerton
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arte: mhl
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João Ewerton

 

Sugiro aos leitores que estão chegando pela primeira vez que leiam o episódio anterior para poder entender o início deste episódio. 

As lembranças do meu avô e seu desconfortável retorno me vieram de imediato, assim que me dei conta de estar sobre as águas misteriosas e poderosas do rio Negro, empoderado pelo impacto lateral do potente titã Amazonas, muito diferente dos rios sazonais de Bacurituba, que, embora se localize na região da Baixada Oriental maranhense, é dotada de uma paisagem extraordinária, marcada por planícies gigantescas, predominantemente cobertas pelos diversos tons e nuances do verde e das suas sombras, salpicadas em alguns pontos por uma diversificada paleta cromática que se destaca daquele conjunto, atraindo o olhar daqueles que têm a felicidade de trafegar por ali, seja a cavalo, de canoa ou, mais recentemente, de carro. Antes, aquele povoado só era acessível por meio de embarcações à vela ou por aviões, devido à falta de estradas que o ligassem à ilha da capital. 

Aquela imensidão de gramados se estende por tamanha extensão que faz o horizonte distante unir o céu e a terra num beijo solene e concupiscente que gera o sol todos os dias, e o lança por sobre o mundo numa aventura solitária, recebendo-o à noitinha num crepúsculo multicolor, vibrante como os acordes épicos de uma sinfonia de Beethoven, numa ode tropical magnífica, que se encerra num acorde menor descendente, que vai preguiçosamente se estendendo num pianíssimo mágico de preciosa delicadeza. 

Aquele era o cenário por onde o meu avô pensou passear e apreciar, para quem sabe, com aquela tranquilidade, pudesse até recuperar o seu movimento de andar perfeito e elegante como fora outrora. 

Contudo, o seu encontro com a minha avó mudou o curso do seu destino. Acredito até que esse encontro se tenha dado por questão do próprio estado de saúde dele, uma vez que a família da minha avó, oriunda dos povos igbós de Ibadan, na Nigéria, era dotada de grande conhecimento da medicina natural, utilizada por milênios pelos sacerdotes dessas matrizes africanas. 

Acredito que o motivo da visita dele à casa da minha avó se deu por esse tipo de procura, uma vez que a cura da “congestão”, como era chamado o AVC naquele lugar, era feita através de fricções com ervas ou, até mesmo, com as cinzas da roupa com a qual a pessoa estava vestida na hora do ataque da doença. 

É bem provável que os próprios familiares dele o tenham aconselhado a buscar essa alternativa, posto que aquela família era fruto de ex-escravizados seus, conhecidos pela capacidade de curar doenças daquela família com chás e outros recursos surpreendentes, como, por exemplo, recolocar uma rótula do joelho de uma pessoa que a teve deslocada, com um simples emplastro de pimenta malagueta e alguns unguentos feitos com estoraque e outras ervas medicinais. 

A minha avó, nascida em 1905, já nasceu em Bacurituba, 17 anos depois da abolição, e dessa forma o meu avô e os seus familiares não a conheceram, o que torna provável que a minha bisavó, a “Velha Eugênia”, fosse a sua referência de busca, pois era ela a famosa pelos seus benzimentos e toda sorte de remédios feitos com ervas, sementes, cascas, argilas e, até mesmo, material de origem animal, ou as suas cinzas, como o chá das cinzas de fezes de pombos para curar alergia. 

O casamento dos meus avós se deu por uma espécie de contrato feito entre o meu avô e o meu bisavô, que consentiu a união da sua filha aos 21 anos, na perspectiva de que aquele casamento pudesse retirar a sua família da miséria terrível em que se mantinham. 

Não houve nenhum amor como pretexto do laço matrimonial, foi apenas a atração física do meu avô pela beleza pujante da minha avó que o fez propor a formalização desse contrato, o qual foi feito através de uma conversa entre eles dois, a qual foi sacramentada pelo fio do cabelo do bigode dele, coisa comum naquele tempo, pois a honra era levada muito a sério, e o fio do cabelo do bigode de um homem era uma peça sagrada. 

Acontece que, quando a família do meu avô descobriu o tal casamento, o deserdou, e ele teve que amargar as desventuras da sua doença, que o inutilizou. Talvez a sua pressão tenha subido exatamente pela preocupação com o futuro da sua família, uma vez que a minha avó engravidou poucos meses depois do casamento, dando à luz ao meu pai em meados do ano seguinte, já sem a perspectiva da boa vida que havia sido contratada. 

Nesse ano fatídico, o pai da minha avó faleceu, e concomitantemente, a família do meu avô, sabendo do seu estado grave de saúde e do filho recém-nascido, o procurou para fazer as pazes e lhe devolver a herança, ao que ele não aceitou por puro capricho. 

Diante dessa atitude dele, e da miséria em que eles estavam mergulhados juntamente com o filho, a minha avó considerou que ele não pensou no filho nem nela e agiu de forma egoísta, e, a partir daquele momento, ela decide romper com o casamento e o mantém em casa por um ato de caridade. Desesperada para sustentar os filhos, pois meses antes da sua prostração havia nascido a minha tia Zila, sem pensar no que o povo diria a respeito da sua conduta, a minha avó, depois de sair de um contrato que o seu pai fizera e que o meu avô não cumpriu ao se negar a aceitar a herança que a sua família lhe deveria por consideração às crianças, sem outra alternativa num interior de poucas ruas e sem possibilidade de emprego que não fosse a roça para aqueles que tinham alguma terra, acabou se envolvendo com um rapaz, com o qual teve dois filhos meninos e conseguiu sustentar os filhos e o ex-marido nos anos que ele atravessou sem movimentos e sem fala, apenas escrevendo suas trovas, até a sua morte, que chegou em 1942, aos 57 anos de idade. 

Tudo isso passava pela minha cabeça até que a voz alvissareira da falsa simpatia marketeira do rapaz que vendia as senhas do wi-fi da Madame Crys rompeu o silêncio para anunciar as modalidades e seus valores. 

Aquela voz me chamou mais atenção porque eu estava aguardando uma oportunidade de falar com ele, pois, durante o tempo de espera pelo início do embarque, fiquei posicionado numa cadeira entre dois grandes conjuntos de cadeiras onde os passageiros jovens se encontravam, e esse rapaz passou em frente a mim três vezes, falando com todos os passageiros e oferecendo as vantagens daquele wi-fi, mas me ignorou completamente, fazendo-me rir comigo mesmo, reconhecendo que, num ambiente de jovens, um idoso normalmente adquire a invisibilidade social, dependendo do assunto que esteja sendo tratado. E aquele rapaz, com certeza, pensou que eu sequer sabia o que era wi-fi, o que me fez rir da ingenuidade dele, pois tenho certeza de que ele não sabe usar metade dos programas de inteligência artificial de texto, imagem e homepages que utilizo no meu dia a dia. 

Ao chegar junto ao meu assento para oferecer sua preciosa senha de wi-fi, a qual, se eu soubesse que existia, não teria adiado a minha viagem por conta da audiência, pois eu tinha espaço para me isolar dentro da lancha, e o bendito wi-fi é muito bom. 

Mas, enfim, o eloquente jovem se aproximou com o seu sorriso ensaiado, e, depois que ele terminou de declamar o seu texto de marketing, sem pronunciar um gatilho mental que fosse, descrevi-lhe o que sentia enquanto ele me ignorava no local de espera da Madame Crys. Disse tudo da forma mais simpática possível, sem nada que denotasse qualquer ressentimento, até porque eu não o tinha. Contudo, no final da minha fala, ele sorriu amarelo e, para desfazer o mal-entendido, me ofertou uma senha master, aquela que dura todo o período da viagem, pois as outras são frações de diversas quantidades de horas. 

Nas poltronas ao meu lado estavam, à minha direita, uma moça que era vendedora de material de construção no atacado, que, após amanhecer, negociou a viagem inteira. 

À minha esquerda, havia um jovem senhor que estava com um grupo bastante grande de torcedores do Caprichoso e, durante as últimas horas da madrugada, pois saímos do porto de Manaus às 5 horas, ele me contou tudo sobre as qualidades do Caprichoso, afirmando ser muito amigo do Rossy, diretor geral do Caprichoso. 

Logo que o sol raiou, num espetáculo épico que só o Amazonas pode nos oferecer, grande parte dos passageiros, incluindo a minha pessoa, preferiu ir para a traseira da lancha, onde já estavam preparando uma churrasqueira para o tira-gosto, pois os freezers de cerveja e outras bebidas já estavam abastecidos e muito bem gelados. Ao lado dos freezers, havia uma potente caixa de som high-tech, tocando todas as músicas do repertório dos bois de Parintins, dando um clima festivo, e empolgante.

 

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joao ewertonHá 3 semanas São LuísArlete Bacamarte, concordo completamente com você quando diz no teu comentário: "Você está difundindo uma parte do Brasil que é a alma do país", pois o Amazonas é a essência física, a onírica e a transcendental do Brasil e dos seus povos. Ainda vou falar um pouco sobre isso adiante, quando citar " O livro de ouro de Saint Germain" e outras literaturas que revelam uma Amazônia mais extraordinária do que toda essa parte material que ainda sequer conhecemos. Uma maravilha que só o Brasil possui.
joao ewertonHá 3 semanas São LuísJoizacawpy, obrigado pelo belo comentário. A maturidade nos dá a sabedoria para sorrir daquilo que nos irritaria na nossa tenra juventude. É o sorriso da compreensão, por ver que toda empáfia insuflada pelo vigor físico se perde com o tempo e dá lugar à expansão da alma e da sabedoria. Obrigado.
Arlete BacamarteHá 3 semanas Blumenau SCEu sou Caprichoso. Sabe de uma coisa Eu moro em Blumenau.. tinha dificuldade de conhecer os meandros desse folclore..aí eu passei a ler aqui. Você está difundindo uma parte do Brasil que é a alma do país..muito honrada porque eu nasci em Parintins e moro há 15 anos em Blumenau para onde meu marido foi transferido. Agora estou Revivendo a minha história.
Joizacawpy Há 3 semanas São luís Que texto maravilhoso nos oferece uma viagem com descrições de rios amazônicos o qual utiliza música para descrevê-los, passa pela história fã família chega a parte que é ignorado por ser um idoso, e o mocinho "prevê" que ele não entende nada de tecnologia sendo que ele sabe muito e o rapazinho preso num simples Wi-Fi e ele achando graça. Finda então o texto com um bom churrasco e um repertório riquíssimo dos bois de Parintins. Muito bom.
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COLUNISTA JOÃO EWERTON
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Sobre Um dos mais aplaudidos roteiristas de cinema da atualidade, o escritor, designer gráfico, diretor e pensador das artes de representar, dá ao Facetubes, a honra de compor seu quadro de colunistas, o que o faz, em altíssimo nível.
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