A Mercearia Mundo Azul
Socorro Guterres
Sim, modifiquei um pouco a denominação deste paraíso da minha infância, mas quem viveu na capital maranhense logo irá lembrar o nome original. Mas prefiro chamá- la assim, posto que na época, no meu mundo azul, a mercearia presentificava alegrias diárias. Localizada na rua em que eu morava, entre meus 6 e 11 anos, era o shopping que ainda nem sonhávamos um dia ter.
Tomava quase toda a esquina ( já movimentada, tantas décadas atrás), com uma placa imensa em que ostentava no logotipo o globo terrestre, azul, como os meus dias de criança na casa de dois pavimentos, estreita e comprida, como um castelinho encantado por onde eu chegava, subindo muitos degraus, à janela grande com vista para a mercearia. Mais mágica ainda era a caderneta que mamãe possuía e permitia o crédito para as compras nesse lugar de sonhos. Eu achava tão fácil: escolher e anotar na cadernetinha.
Não conhecia, praticamente, o dinheiro; era como os cartões bancários atuais, ou mais modernamente, o pix. Um registro, a assinatura ( nossa senha) e o mundo em compras disponível. Lembro: eram os meus anos queridos, que o tempo não dispõem mais. Minhas riquezas ali, além de todo sortimento para a despensa da casa, se resumia nos doces, nas balas de caramelo, nos pirulitos coloridos, na goiabada caseira com que preenchia o pão da merenda escolar, e um um outro brinquedo, nas datas propícias, como as bonecas de papel que traziam muitas roupinhas para recortar. Então, nas nossas próprias sacolas, carregavámos para casa um pouco desse mundo para abastecer nosso imaginado palacete, na rua da minha meninice.
A felicidade e o riso fácil somente algumas vezes foram interrompidos, quando, por exemplo, na esquina oposta ao Mundo Azul, houve um crime bárbaro, numa loja de ferragens, em que um sócio matou o outro por motivos sórdidos. Assim, quase ao lado da nossa casa, a morte adentrava e dava-se a conhecer. Eu nem sabia dela ainda, era algo tão distante, como os países desenhados no mapa-múndi da marca do mercadinho, então gigante, que adoçava meus dias.
O mundo em duas esquinas: soturno e azul; a vida descortinando verdades e a infância passando ligeira. Do alto do castelinho dos meus oito anos, a visão aclarada em realidades. Então, guardei os sonhos, em grandes potes de vidro, como na Mercearia Mundo Azul, e fui retirando- os, pouco a pouco, registrando na caderneta todo o crédito na vida.
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