João Ewerton, APB-MA
O ar-condicionado da Madame Crys é extremamente eficiente, a tal ponto que, em pouco tempo de viagem, quase todos preferiram ficar recebendo o hálito refrescante do interior da lancha, que nos alcançava na popa, mesclado com os ares equatoriais que a velocidade da embarcação trazia em ondas amenas. Essas ondas eram suavizadas pelo arrojado design aerodinâmico da Madame Crys, de tal forma que o vento rompido pela embarcação sequer prejudicava as brasas da churrasqueira, que funcionava a pleno vapor, servindo-nos o delicioso churrasco em fatias, como aperitivo, socializado entre todos os passageiros que optaram por viajar naquela área de lazer tão agradável. Enquanto isso, abaixo de nós, os potentes cavalos de força da Madame Crys davam coices insanos nas águas do Amazonas, impulsionando-nos para frente numa velocidade vertiginosa, como diria o meu amigo Caetano Veloso nos versos da sua bela canção "Um índio".
Foi ali, naquele momento festivo, que ouvi pela primeira vez a música junina mais executada nos streamings de música brasileira, o hit do Caprichoso intitulado "Malududu", palavra iorubá, que, embora traduzida como “boi preto”, na verdade, no idioma original, tem o significado de "vaca preta". O termo correto para “boi preto” é "bọ̀ọ̀lù dudu". Mas isso pouco importa diante do significado dessa música para o festival de Parintins, onde ela tem uma simbologia muito maior, pois representa o momento em que o festival, especificamente o Caprichoso, busca dar espaço e visibilidade à influência das matrizes africanas no contexto do espetáculo. O festival reconhece que é impossível falar da cultura nacional sem mencionar as matrizes africanas, especialmente no que diz respeito ao Bumba-meu-boi, que se origina da lenda de Pai Francisco e da Negra Catirina, um casal de escravizados negros.
Entendemos a preocupação do Caprichoso quando assistimos ao espetáculo na arena e percebemos sua grandiosidade e avanço tecnológico, os quais não teriam sentido sem o avanço cultural que sustenta o nível do festival. Na própria história universal, vemos que o avanço tecnológico da humanidade depende do seu desenvolvimento cultural. A cultura não só rege a mentalidade humana como representa a própria essência da humanidade, que, por sua vez, é o retrato de sua cultura. É a cultura que nos permite avançar ou estagnar numa jornada, pois, se avançada, funciona como um portal para amplos horizontes, mas, se atrasada, age como uma muralha intransponível que aprisiona o ser no universo da estagnação.
Quando fazemos uma viagem pelas origens do Brasil, descobrimos que a sua origem se deve exatamente às diferenças culturais, uma vez que a barreira imposta por essas diferenças foi responsável por impedir que Portugal consolidasse uma rota de comércio por terra com o Oriente, forçando-o a se aventurar por mares nunca dantes navegados em busca de uma rota marítima que os levasse às Índias.
Com esse propósito, Vasco da Gama partiu de Portugal em julho de 1497.
Na primeira etapa da viagem, os portugueses seguiram o mapeamento do Oceano Atlântico, contornando o continente africano até o início do Cabo da Boa Esperança, feito por navegadores anteriores com o auxílio do astrolábio, que permitia calcular as horas, a latitude, os pontos cardeais e as direções a serem seguidas, além de identificar quando um determinado evento celeste aconteceria, como, por exemplo, o horário do nascer do sol.
Todavia, após cruzarem o turbulento e traiçoeiro Cabo da Boa Esperança e enfrentarem uma tempestade, a armada de Vasco da Gama passou a ser conduzida pela incerteza e pelas fantasias alimentadas pela cultura medieval, que ainda se mantinha forte nas terras europeias. Temiam tanto o fim de um mundo físico, que poderia levar as naus a pique e serem devoradas pelos abismos infinitos dos limites da Terra, quanto a presença de monstros marinhos gigantescos, capazes de engolir as naus de um só gole.
Somente ao se aproximarem da costa de Moçambique e avistarem suas habitações, Vasco da Gama e todos os homens da sua armada deixaram de lado as cogitações anteriores e voltaram sua atenção para as informações deixadas pelo grande descobridor dos caminhos marítimos para as Índias, o grande viajante português Pêro da Covilhã.
A mística cultura medieval europeia alimentava uma lenda sobre o mítico reino de Preste João, com detalhes tão convincentes sobre seu poder e riqueza que o rei de Portugal, Dom João II, enviou uma missão em busca desse reino no ano de 1487. Para essa missão, designou Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva, que partiram de Santarém no dia 7 de maio de 1487, passando por Barcelona e atravessando toda a Espanha a cavalo. De Barcelona, eles embarcaram para Rodes, na Grécia, e seguiram para Alexandria, no Egito, de onde foram para o Cairo. Lá, se infiltraram em uma caravana árabe que partia em direção ao Oriente, atravessaram o Sinai e foram os primeiros europeus a visitar Meca e Medina, locais que até hoje são fechados a não muçulmanos.
Continuando a viagem, Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva prosseguiram até Áden, na atual Somália, onde se separaram: Afonso de Paiva partiu para a Etiópia em busca de Preste João, e Pêro da Covilhã seguiu para a Índia, com o propósito de se reencontrarem alguns meses depois no Cairo.
Um ano e meio depois, Pêro da Covilhã chegou a Calicute, no sul da Índia, onde obteve informações sobre a China e a Malásia, antes de visitar Goa e Ormuz. Deste último destino, Covilhã regressou para a África, onde percorreu a costa oriental até Melinde, no Quênia, Sofala (atual Moçambique) e Tanzânia, sempre recolhendo informações confidenciais e valiosas. Essas informações foram fundamentais para a posterior viagem de Vasco da Gama, sendo possível garantir, sem medo de erro, que Pêro da Covilhã foi o verdadeiro descobridor português do caminho marítimo para as Índias.
Em 1491, Covilhã regressou ao Cairo, onde se encontrou com enviados do rei português e foi informado da morte de seu companheiro, Afonso de Paiva. Disposto a cumprir a parte da missão que caberia a Paiva, Covilhã entregou seu relatório aos emissários do rei, com informações precisas sobre todos os lugares visitados, principalmente sobre os reinos da costa oriental africana, confirmando a existência de uma rota marítima de comércio secular entre a África Oriental e as Índias. Após isso, Pêro da Covilhã seguiu para a Etiópia, pretendendo encontrar o imperador Preste João, mas encontrou no trono os sucessores do mítico imperador e percebeu que a riqueza e o poder militar daquele reino haviam sido grandemente exagerados pela lenda alimentada pelos marujos mercadores.
Impedido de voltar a Portugal por uma lei local que proibia qualquer visitante de deixar a Etiópia, Pêro da Covilhã tornou-se conselheiro régio, casou-se com várias mulheres, teve inúmeros filhos, recebeu muitas terras e permaneceu na Etiópia até os 80 anos, quando faleceu por morte natural.
Guiado pelas informações de Pêro da Covilhã, Vasco da Gama e os homens de sua armada entraram no porto moçambicano com muita cautela, pois sabiam que os habitantes eram muçulmanos e, diferentemente das outras etnias com as quais haviam tido contato anteriormente, vestiam-se com panos coloridos de linho e algodão, usavam turbantes vistosos e eram grandes mercadores que falavam ou entendiam o árabe.
Vasco da Gama se surpreendeu com o grande volume e variedade de produtos de alto valor que circulavam por ali, como metais preciosos, joias e especiarias.
Os contatos dos portugueses com os nativos moçambicanos foram cautelosos, oscilando entre alguma cordialidade e muita desconfiança de ambas as partes, sobretudo quando o sultão da ilha, que inicialmente os tomou por muçulmanos, descobriu que eram cristãos.
O sultão subiu a bordo do navio de Vasco da Gama, onde trocaram presentes e palavras de cumprimento. Vasco da Gama pediu dois pilotos, ao que o sultão concordou, mas os portugueses perceberam, pouco depois, que aqueles pilotos lhes forneciam informações falsas e os induziam ao erro, conduzindo-os para uma emboscada quando foram buscar água doce para abastecer os navios.
A armada de Vasco da Gama desistiu de buscar água e prosseguiu para o norte, até atingir Mombaça, onde também houve problemas sérios com os muçulmanos.
Vasco da Gama continuou seguindo as orientações deixadas por Pêro da Covilhã, contornando o continente africano em direção ao norte, até chegar à cidade de Melinde, no atual Quênia, no dia 14 de abril de 1498. Lá, encontrou um ambiente mais amistoso e conseguiu, finalmente, obter a confiança do sultão local, que lhe forneceu um piloto que os conduziria até Calicute.
O conhecimento desse piloto possibilitou essa grande conquista para a Europa. Contudo, a vaidade e o racismo dos portugueses os impediram de nomear e valorizar aquele que realmente os conduziu até as Índias. Há especulações de que tenha sido um navegador árabe ou guzerate, possivelmente de origem indiana ou da região do atual Omã. Algumas fontes sugerem que esse piloto seria conhecido como Ahmad ibn Majid, mas essa identificação é controversa e nem sempre aceita pelos historiadores. Seja quem for, o importante é sermos honestos hoje e reconhecermos o mérito daqueles que realmente ensinaram o Ocidente a navegar para o Oriente: Pêro da Covilhã e o piloto Ahmad ibn Majid.
Já em Calicute, durante a visita de Vasco da Gama ao Samorim, houve um grande choque cultural. O Samorim (título dado ao poderoso monarca que governava um dos reinos mais influentes do comércio de especiarias no Oceano Índico) humilhou Vasco da Gama por causa dos presentes que este levou, os quais foram considerados pobres demais, segundo os padrões do Oriente, onde era costume que os visitantes levassem presentes valiosíssimos para os reis. Indignado com os presentes ofertados, os quais ele imediatamente recusou, o Samorim enviou uma carta a Dom Manuel, impondo condições caso Portugal quisesse continuar negociando com seu reino. Um trecho dessa carta, entregue a Vasco da Gama, diz: “Vasco da Gama, fidalgo da vossa casa, veio à minha terra, com o que eu folguei. Em minha terra, há muita canela, muito cravo, gengibre, pimenta e muitas pedras preciosas. E o que quero da tua é ouro, prata, coral e escarlata.”
O pigmento escarlate, extraído de uma pequena lagarta, era tão difícil de conseguir devido aos milhares de lagartas necessárias para produzir um grama, o que o tornava muito raro e mais caro que o ouro.
Esse trecho da carta do Samorim contém a senha para a viagem de Cabral à costa brasileira em 1500, para buscar o pau-brasil. A carta deixa claro que a vinda de Cabral não foi por acaso, mas uma intenção deliberada de roubar a cor vermelha do Brasil para negociar com especiarias, o que resultou num aumento de 800% nas reservas da Coroa portuguesa
Podemos afirmar que o Brasil foi descoberto devido às diferenças culturais daquele período, e especificamente por causa do lado fashion da moda. Embora tentem associar o Brasil à cor azul da Casa de Bragança e ao amarelo dourado da Casa dos Habsburgos, o Brasil nasceu sob o signo da cor vermelha do pau-brasil, ou: ibirapitanga, orabutã, ibirapiranga, ibirapitã, muirapiranga, pau-rosado ou pau-de-pernambuco.
Coincidentemente, o boi Garantido surge em 1910, também sob o signo do vermelho radiante.
A utilização das cores para marcar a rivalidade entre Caprichoso e Garantido nos revela que, no contexto do Boi Garantido, o vermelho representa a força da paixão e da energia, enquanto o azul do Caprichoso simboliza serenidade, harmonia e a conexão com o céu e as águas da Amazônia, tanto no sentido físico quanto no sagrado. Ambas as agremiações usam o branco como cor de base, que pode ser interpretado como a zona de paz harmoniosa da cultura que as une, sob o fictício véu de uma rivalidade estética entre o vermelho e o azul que rendem a exuberância magnífica do festival de Parintins. Essa leitura subjetiva a gente tem muito clara ao visitar Parintins nos dias do festival.
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