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O que está por trás do primeiro romance escrito por uma mulher no Brasil: “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis?

Na verdade, não seria o livro de Teresa Margarida da Silva e Orta - Aventuras de Diófanes - publicado em 1752, realmente o primeiro romance escrito por uma mulher?

04/10/2024 às 10h08 Atualizada em 04/10/2024 às 17h50
Por: Mhario Lincoln Fonte: Mhario Lincoln/Maria Firmina dos Reis
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Designer poético de MHL
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Abaixo, a apresentação do livro pela autora em ortografia da época, quando foi publicada a edição original da obra, em 1859

 

 *Maria Firmina dos Reis

Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador do outros, ainda assim o dou a lume. Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor-próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual e quase nulo. Então por que o públicas? Perguntará o leitor. Como uma tentativa, e mais ainda, por este amor materno, que não tem limites, que tudo desculpa—os defeitos, os achaques, as deformidades do filho—e gosta de enfeitá-lo e aparecer com elle em toda a parte, mostrá-lo a todos os conhecidos e vê-lo mimado e acariciado. 0 nosso romance, gerou-o a imaginação, e não n'o soube colorir, nem aformosentar. Pobre avisinha silvesre, ainda terra a terra, e nem olha para as planuras onde gira a águia.

Mas ainda assim, não o abandoneis na sua humildade e obscuridade, senão morrera à mingua, sentido e minguado, só afagado pelo carinho materno. Elle simelha à donzella, que não e formosa; porque a natureza negou-lhe as graças feminis, e que por isso não pode encontrar uma affeição pura, que corresponda ao affecto da su'alma; mas que com o pranto de uma dor sincera e viva, que Ilhe vem dos seios da alma, onde arde em chamas a mais intensa e abrasadora paixão, e que em balde quer recolher para a coração, move ao interesse aquele que a desdenhou e o obriga ao menos a olhá-la com bondade.

Deixai pois que a minha URSULA, tímida e acanhada, sem dotes da natureza, nem enfeites e louçanias d'arte, caminhe entre vos. Não a desprezeis, antes ampare-a nos seus incertos e titubantes passos para assim dar alento a autora de seus dias, que talvez que com essa proteção cultive mais o seu engenho, e venha a produzir couza melhor, ou quando menos, sirva esse bom acolhimento de incentivo para outras, que com imaginação mais brilhante, com educação mais acurada, com instrução mais vasta e liberal, tenham mais timidez do que nós.

 

 

ACERCA DESTE PRÓLOGO, ABAIXO

Nota do editor; “(...) nesse prólogo acerca do livro de Maria Firmina dos Reis, uma prova inconteste que na época, muitos dos superliteratos maranhenses só olhavam para o próprio umbigo, achando que eram os suprassumos masculinos da integridade literária maranhense. Até hoje ainda acontece isso, impossibilitando a descoberta de novos talentos, mas sim, a repetição insuportável dos mesmos nomes (...)”. Jornalista e poeta Mhario Lincoln in ENSAIOS DA ESTUPIDEZA HUMANA (Volume I).

 

********

 

HORÁCIO DE ALMEIDA

“Esta edição sai a lume sob o patrocínio do Governador do Estado do Maranhão, Dr. Nunes Freire, em homenagem ao sesquicentenário de nascimento da autora, Maria Firmina dos Reis, que tantos anos dormiu no esquecimento dos seus próprios conterrâneos. Quem muito vem trabalhando para perpetuar a sua memória na terra natal e o acadêmico Nascimento Morais Filho, que não descansa na tarefa de reunir fragmentos para um volume da obra completa da autora, em edição atualizada. 0 exemplar único do romance Ursula, existente em meu poder, vai voltar ao Estado de onde saiu. É um prazer que tenho em presentear essa preciosidade biblioteca ao Maranhão, na pessoa do Governador Nunes Freire, que Ihe dará o destino competente”. (Horácio de Almeida).

 

 

O livro de que se tira desta edição fac-similada é talvez a maior raridade bibliográfica do Maranhão. Trata-se de romance escrito por mulher e passa por ser o primeiro no Brasil de autoria feminina. Além do mais, só existe um exemplar conhecido da obra, fato que a torna mais valorizada, independente do seu mérito literário.

Pouco se sabe da autora. Seu nome, Maria Firmina dos Reis, permaneceu mais de um século sepultado no esquecimento. De espantar é que isso tenha acontecido no Maranhão, terra que foi no passado um viveiro de homens ilustres, muitos dos quais com repercussão além das fronteiras do Brasil.

Eram tantos os que se acotovelavam na literatura maranhense, entre jornalistas, poetas, escritores, ensaístas, historiadores, que São Luís, a gloriosa capital do Maranhão, granjeou fama de Atenas brasileira. Nenhum, entretanto, tomou conhecimento da autora, certamente porque era mulher, numa época em que o homem fazia alarde da proclamada superioridade do sexo. Os poucos que lhe declinaram o nome, limitaram-se a dar, através dos jornais e dos arquivos, atribui a Maria Firmina quatro livros, acrescentando o romance Gupeva aos três citados por Sacramento Blake. Mas onde estão esses livros para confirmação do asserto? Sacramento não os via, porque na hipótese afirmativa, teria mencionado de cada um o gênero literário, assunto tratado, número de páginas, data e lugar da edição, conforme método adotado em sua obra. Apenas relacionou pelo título os três volumes publicados, o que mostra haver feito o verbete à base do informado.

Ele própria declara no Vol. 7 do Dicionário que expedira mil circulares aos literatos de todo o país, pedindo dados para a obra que tinha em elaboração e bem poucas foram as respostas recebidas. Do livro de versos Cantos a Beira-Mar, Antonio Henriques Leal fez citação no Panteon, indicando inclusive o número da página. Logo, existe, embora continue desaparecido. Quanto aos outros, uma prova agora aparece para mostrar que Sacramento Blake estava bem-informado quando incluiu o romance “Úrsula” entre as obras publicadas por Maria Firmina dos Reis. 0 acaso, às vezes, ajuda a desanuviar o passado. Foi o que aconteceu quando me pôs às mãos este romance, que e, ao que parece, o único exemplar conhecido.

Faz coisa de seis ou oito anos comprei um lote de livros, entre os quais vinha uma pequena brochura, que me despertou a atenção. A bem dizer, foi por causa dessa brochura que adquiri os livros em apreço. A folha de rosto assim rezava: Ursula/Romance Original Brasileiro/Por Uma Maranhense/San'Luis/Na Typographia do Progresso/Rua Sant'Anna, 49 — 1859.

O Livro não trazia assinatura alguma. Consultei Tancredo e outros dicionários de pseudônimos e nenhum me revelou quem fosse uma maranhense. Pensei em Sacramento Blake, mas só podia consultá-lo se tivesse o nome da autora, que era então para mim uma incógnita. Fui ao índice do seu Dicionário, levantado por Estados da Federação, obra bem curiosa de Otavio Torres, Salvador, Bahia. Percorrendo a relação dos escritores maranhenses, encontrei Maria Firmina dos Reis, que Sacramento Blake apresenta como autora do romance Ursula. Estava decifrado o enigma, mas o livro continuou sem leitura. Passados alguns anos, achei por bem fazer um trabalho para os Anais do Cenáculo sobre um tema que me pareceu interessante.

(Divulgação).

Cogitava de saber qual o primeiro romance escrito no Brasil por uma mulher. As investigações feitas me levaram ao romance “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis, dado a estampa em 1859. Antes, ninguém apontara outro. O que vale, no caso, e romance e não tradução de romance, como fez Nisia Floresta.

Também não entra aqui, em linha de cogitação, o romance de Teresa Margarida da Silva e Orta - Aventuras de Diófanes - publicado em 1752, porque esse romance, em verdade, não é brasileiro. Teresa Margarida nasceu em São Paulo, de onde se retirou aos cinco anos de idade, levada por seus pais para Portugal. Nunca mais voltou ao Brasil.

0 romance que lá escreveu e publicou, enredado na fábula, foi, com efeito, a primeiro de mulher brasileira, mas o que se quer é romance escrito no Brasil, com tema e cor locais, saído da pena de uma mulher. Neste caso está “Úrsula”. É o primeiro de autoria feminina, surgido no Brasil, como o primeiro, de autoria masculina, é “0 Filho do Pescador”, de Teixeira de Souza, publicado em I843.

A autora, ou por modéstia ou temerosa da crítica, oculta-se no anonimato. Declara-se, no prefácio do livro, de pequeno cabedal nas letras para tão ousado empreendimento, sem convívio, ao menos, com homens letrados de quem pudesse receber conselhos. Era mulher e mulher do interior de uma província. Mesmo assim, ‘dava a lume o fruto de sua imaginação’, como a mãe matuta que enfeita o filho para com ele aparecer em público.

Os horizontes em que exerce a ação do livro são demasiado limitados. Uma prosa jungida a preocupações escorreitas, como era moda, ressoa através de duzentas páginas. Aqui e ali, como uma pedra de tropeço, topa o leitor com uma palavra fora de uso, exumada dos clássicos.

No mais, carece o romance de outros requisitos, como o colorido das descrições, a fixação dos costumes, a espontaneidade do estilo coloquial. Com relação ao coloquial, predomina o tratamento de vos entre todos os personagens, até mesmo os mais humildes, os escravos, que não claudicam nas formas verbais. Porventura, não são também artificiosas as obras literárias dos tempos românticos?

A autora vai além e não consente que o drama de amor, em que implanta a ação do livro, tenha consumado. Mata um a um todos os personagens, antes do tempo. Ursula, a principal figura do romance, morre assassinada, juntamente com o noivo, na hora em que a vida lhe palpita felicidade, quando sai do altar para o abraço nupcial.

O noivo é um bacharel cheio de bacharelice, que morto não faria falta. No entanto, Úrsula ama-o, com aquele amor clorótico dos tempos românticos. As cenas de amor e de ódio que no livro se sucedem, acontecem sem qualquer preparação psicológica. Cabe, todavia, a Maria Firmina dos Reis privilegio até então inédito de produzir o primeiro romance no Brasil, como pioneira da seara feminina, sem influência alienígena, onde um escravo, por seu caráter, por sua alma branca, ocupa lugar de destaque no piano da obra.

A gloria é também do Maranhão, terra já afamada pela safra imensa de valores humanos com que abasteceu o Brasil no século passado, para maior esplendor do pensamento brasileiro no campo da literatura.

Horácio de Almeida

Rio de Janeiro, setembro de 1975.

 

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Pedro SantiagoHá 1 ano São Luís do Maranhão Estranho os maranhenses se absterem de comentar aqui. Continuam fazendo descaso dessa que é a maior romancista negra do Brasil.
Leocadio DaniloHá 1 ano Blumenau scParabéns a Maria Firmina uma das maiores romancistas do Brasil.
Prof. Batista Há 1 ano São Luís O texto do Horácio é perfeito. Confirma autenticidade de Maria Firmina e dá um tapa de luva nos machistas de plantão travestidos de intelectuais que passaram 100 anos para reconhecer o valor de Maria Firmina dos Reis..
alcina maria silva azevedoHá 1 ano Campinas -SPGrandiosa Maria Firmina dos Reis, que envergou a bandeira de liberdade feminina, na Literatura.
Luiz de Freitas, escritor e pesquisador.Há 1 ano Brasilia DFEntão quer dizer que foi o Horário o primeiro a desencalhar a obra de Maria Firmina? Com a palavras os especialistas.
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