João Ewerton é da APB/MA
A Madame Crys, apesar de todo o seu requinte e elegância no trato de seus passageiros, não poupa sua potência de motores, singrando vorazmente as águas titânicas do maior rio do mundo em volume d’água, como se fosse Amaru, a serpente que desceu do céu como um raio de fogo e teria a habilidade de mover-se entre os três níveis do cosmos amazônico: o mundo subterrâneo (Uqhu Pacha), a superfície terrestre (Kay Pacha) e o mundo celestial (Hanan Pacha), cuja presença era vista pelos nativos como uma manifestação das forças divinas, capaz de trazer vida e abundância ou, em alguns casos, destruição, dependendo de como seus poderes eram invocados ou tratados.Volto a minha atenção outra vez para o meu entorno, na proa da embarcação a jato, onde alguns dos passageiros permanecem sentados em poltronas dispostas perto do grande freezer horizontal, abastecido com muita cerveja gelada, enquanto outros, já um pouco tomados pelo efeito do álcool disfarçado na cerveja, estão de pé, executando coreografias em pares ou quartetos. Aquele happening desconexo e, muitas vezes, desengonçado, me fez imediatamente, como diretor de cena e criador de espetáculos e filmes, ver aquilo tudo com outra leitura interpretativa, onde aqueles passageiros, em clima festivo ao som das mais novas toadas dos dois bois mais famosos do Brasil, tivessem o compromisso com as notas do Caprichoso, logo mais à noite no Bumbódromo, e ensaiassem para “garantir” a nota máxima para os Itens: 20 ou 21: A Coreografia ou o Conjunto Folclórico, itens que se referem à performance dos grupos de dança, como os tradicionais curumins, cunhantãs, caboclos e caboclas, que devem executar coreografias sincronizadas, onde a precisão, a expressão corporal e a adequação ao tema são julgadas. Aqueles jovens pareciam estar se esforçando ao extremo para não deixar nenhum detalhe técnico fora do altíssimo padrão que eles imaginavam estar executando, embora a realidade insistisse em denunciar que eles, na verdade, estavam muito longe daquilo que todos eles imaginavam, conforme iam desmascarando suas insustentáveis fantasias pessoais, com falta de dinâmica, criatividade nos movimentos e desconexão rítmica, atropelada mortalmente pela absoluta falta de sincronia.
Ali, a única coisa que parecia estar fielmente manifestada era a diversidade das tribos a que pertenciam, o que podia ser notado pela falta de harmonia e liberdade dos movimentos naquela microarena, isso sem levar em conta o discrepante conjunto das suas indumentárias, da alegria pertinente ao conteúdo do miniespectáculo, assim como a discrepante diversidade das indumentárias, que não ofereciam quase nenhuma fidelidade ao tema. Principalmente depois que umas três mocinhas, trajando shorts feitos apenas com o tecido que sobrou do cós de suas calças jeans, as quais pareciam ter entrado naquela cena disputando o Item 9 – Cunhã-Poranga, as quais, por alguns instantes, quase desconheciam a amizade que as levara para aquele lugar, quando decidiram disputar o mais aplaudido quesito desse item: “a mais bonita, a mais guerreira e guardiã”. Contudo, acho que, no calor da disputa, nos seus delírios vaidosos, elas acrescentaram o quesito de “maior força na cotovelada”, o que era demonstrado através de discretas, mas contundentes, estocadas dos cotovelos que elas aplicavam em suas “amigas/adversárias” para retirá-las do centro da minúscula arena da Madame Crys.
Diante da discrepância daquele quadro quixotesco, decidi voltar para a minha poltrona na dianteira da embarcação.
Em determinado momento da viagem sentimos o impacto da quilha metálica da proa da lancha, impactar contra algo que, pelo ruido produzido e o soco do impacto na estrutura da embarcação, parecia ter atingido um corpo compacto de músculos rijos, como o de uma sucuri, ou de outra serpente de grande porte, uma jiboia, por exemplo, que estivesse atravessando o rio, exatamente na rota da embarcação, uma vez que, se fosse um tronco, ou uma croa de areia, teríamos sentido um impacto mais seco e contundente, ainda que, não tivesse sido um impacto alarmante, mas forte o suficiente para chamar a atenção dos passageiros, sem que conseguíssemos identificar o que teria sido esse obstáculo que atropelamos e deixamos para trás.
Como bom habitante da região da baixada maranhense, região de pântanos e de grandes sucuris, arrisquei comentar com o passageiro ao meu lado, que aquele ruido teria sido produzido pelo atropelamento de uma grade sucuri. Foi o suficiente para aquele simpático e vivaz amazonense tomar as rédeas do assunto e me dizer de forma categórica que; se o Rio Amazonas secasse a ponto de restar apenas a lama do seu leito, esse ficaria parecido com uma macarronada fervilhante, devido ao incontável número de sucuris que estariam presas naquele lamaçal.
Aquela imagem descrita com um véu de mistério na inflexão das palavras daquele jovem sujeito, me fez viajar pelo universo mítico da minha própria terra, pois no Maranhão, reza a lenda, que há uma serpente gigantesca escondida nos subterrâneos da ilha de São Luís, a qual cresce constantemente, e, no dia em que sua cabeça se encontrar com a cauda, a ilha de São Luís afundará e surgirá um novo reino em seu lugar.
Dessa lembrança, como num passe de mágica, passei a divagar pela história humana, que apresenta a serpente nas mais diversas configurações e funções, como na própria bíblia, no início da humanidade, ela já está presente, influenciando diretamente no destino da jornada humana, ou no êxodo, como uma escultura de bronze que curava aqueles que foram picados por cobras venenosas.
O Certo é que, desde então a serpente acompanha as civilizações com as mais variadas e adversas habilidades positivas, ou negativas, como por exemplo, na própria Amazônia, onde ela se apresenta como a lenda da Cobra Grande, também conhecida como Boiúna ou Cobra Norato, sendo uma das mais famosas e difundidas lendas da Amazônia brasileira, sempre na forma de uma gigantesca serpente que habita os rios e lagos da região, especialmente o Rio Amazonas.
A Cobra Grande é temida pelos ribeirinhos e possui um papel simbólico, relacionado aos mistérios da floresta e às forças da natureza, onde muitas vezes é descrita como sendo capaz de causar tempestades, enchentes e tragédias naturais quando se movimenta. Além de outras versões, onde ela pode se transformar numa bela mulher para atrair suas vítimas, ou numa figura masculina que encanta e seduz.
Se buscarmos um pouco atrás na história do continente, vamos encontrar a Serpente Emplumada, nas culturas pré-colombianas da América Central e do Sul, na mitologia dos maias e astecas, a qual se apresentou no início dessas civilizações, como um homem de barbas brancas que os ensinou a plantar o milho, base das suas alimentações. Todavia no contexto do império das incas vemos Amaru, uma serpente que simbolizava poder e transformação, enquanto entre os astecas encontramos a Quetzalcóatl, a famosa serpente a emplumada, que é a mesma Kukulcán dos maias, que como Amaru compartilha o aspecto de ser uma criatura poderosa que une o céu e a terra.
No continente africano, vamos encontrar no Daomé, a cobra Dan, uma entidade de grande importância no panteão das religiões tradicionais do Benim, particularmente no culto vodum do antigo Reino do Daomé, atual Benim e também em partes do Togo. Esta cobra é frequentemente associada à força vital e à continuidade da vida, sendo venerada como um símbolo de poder, proteção e fertilidade.
Também na África, vamos encontrar no Egito a Ouroboros, um símbolo antigo, representado por uma serpente que se alimenta da própria cauda, formando um círculo, simbolizando o ciclo eterno de criação e destruição, a vida, a morte e o renascimento, além da unidade e infinito, remetendo à ideia de uma ordem cósmica, onde todos os signos, as estações, os planetas, estão conectados num único ciclo harmônico. Acredita-se que a primeira representação do Ouroboros tenha surgido no Antigo Egito por volta de 1600 a.C., e um dos primeiros exemplos conhecidos está no túmulo do faraó Tutmés III.
Ao longo dos séculos, o Ouroboros foi incorporado em diferentes culturas e tradições esotéricas. Na cultura nórdica, por exemplo, a serpente Jörmungandr, que circunda o mundo, também tem elementos que ressoam com o conceito de um ciclo contínuo e uma força construtiva e destrutiva que, ao mesmo tempo, sustenta o universo.
E já que a Ouroboros nos levou para o continente europeu, vamos ver que nele também as serpentes têm papeis místicos e multifacetados, frequentemente simbolizando temas de poder, sabedoria, renovação, fertilidade e, em algumas tradições, destruição e perigo.
Na Grécia Antiga, a serpente tem uma presença ambígua, associada tanto à vida quanto à morte, à cura e ao veneno, como se vê na serpente associada ao deus da medicina, Asclépio como um símbolo de cura, como também a veremos como símbolo do mal na figura de Medusa, uma das Górgonas, cujos cabelos eram feitos de serpentes, e transformavam em pedra todos aqueles que a olhassem, ressaltando o poder destrutivo e o mistério das serpentes. Encontraremos ainda na mitologia grega a serpente Pitão que guardava o oráculo de Delfos, até ser morta por Apolo, marcando a transição de um oráculo primitivo, vinculado à terra e aos mistérios telúricos, para um oráculo mais civilizado e solar.
É quase impossível citar a mitologia grega sem citar a Hidra de Lerna, uma serpente aquática com sete cabeças, sendo uma das criaturas mais temidas da mitologia grega, a qual se torna muito conhecida por ser um dos desafios que Hércules enfrentou durante seus doze trabalhos.
Roma conquistou a Grécia militarmente e a Grécia conquistou a Roma espiritualmente, por isso, vamos encontrar na mitologia romana, as serpentes com muitos dos significados herdados da Grécia, mas também assumem novos simbolismos, como protetoras domésticas, sendo usadas em pequenas estátuas que eram colocadas nos lares como espíritos protetores da casa e da família, além de simbolizarem a fertilidade, prosperidade e renovação. Em Roma as serpentes eram também associadas a deuses como Júpiter e Quirino, sendo ligadas a rituais religiosos de purificação.
Na Ásia vamos encontrar na tradição hindu, as serpentes, ou, Nāgas, seres semidivinos que habitam os rios, lagos e o submundo, que têm uma grande significância espiritual, sendo veneradas como divindades, ao mesmo tempo que representam tanto o perigo quanto a proteção, ou a serpente Shesha, a serpente cósmica que serve de cama para o deus Vishnu, como representação da eternidade e da infinitude, enrolando-se sobre si mesma para formar um símbolo do ciclo sem fim da vida e da criação.
Já no hinduísmo, a serpente também está associada ao conceito da energia espiritual do kundalini, que reside no primeiro chacra, na base da coluna vertebral, a qual, quando despertada, faz subir a sua energia como uma serpente através de vértebra, iluminando todos os chacras, até alcançar a iluminação no topo da cabeça, o chacra coronário ou sahasrara. Também não podemos esquecer a serpente Agasura que segundo a mitologia hindu, é uma das muitas criaturas demoníacas que o jovem Krishna derrotou.
Na China, a serpente é um dos 12 animais dos signos do zodíaco, e é vista de forma mais positiva, sendo associada à sabedoria, à fortuna e ao poder, enquanto no Feng Shui, a serpente é associada à energia da sabedoria e da observação cuidadosa, simbolizando a capacidade de ver além do óbvio e tomar decisões a partir de boas informações.
Quem já sobrevoou a região amazônica em noite enluarada, sabe como o reflexo do luar nas águas dos rios criam serpentes luminosas ligeiras que serpenteiam conforme os sinuosos meandros dos rios, numa dança deslumbrante que nos encanta e faz pensar bastante sobre a magia desse mundo de águas indecifráveis e desses répteis abundante e misteriosos que nos assombram e muitas vezes nos fascinam.
Finalmente, vemos que a serpente está tão arraigada no inconsciente coletivo que Carl Jung a interpretou como Ouroboros, um arquétipo que reflete a psique humana, simbolizando a integração dos opostos: vida e morte, luz e escuridão, masculino e feminino, que conduzem a humanidade em busca de sua totalidade.
Enfim, sem julgar os méritos ou deméritos da serpente e as múltiplas associações que os seres humanos fazem com sua figura, ela continua sendo um animal misterioso e atemporal, que ressoa em várias esferas do pensamento místico, espiritual e filosófico até os dias de hoje.
Mais uma vez, volto do meu mundo fantástico para me ater ao que acontece a bordo da Madame. A menos de uma hora de atracarmos no porto de Parintins, os comissários de bordo, seguindo nossas escolhas no cardápio, nos serviram uma bela bandeja de alumínio contendo, conforme a opção do passageiro, estrogonofe de filé bovino ou filé de pirarucu passado na manteiga ao molho de alcaparras, com um toque delicado de gengibre e algumas ervas finas, acompanhado de arroz branco e um delicioso purê de batata. O prato estava tão delicioso quanto bonita era sua apresentação. Poucas coisas podem se comparar ao sabor de um bom peixe amazonense servido no Amazonas, especialmente quando se navega pela primeira vez, de forma tão opulenta, sobre as águas abençoadas desse caudaloso, misterioso e maravilhoso rio Amazonas.
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