João Ewerton, especial para o Facetubes (www.facetubes.com.br)
Apesar de termos saído de Manaus uma hora depois das outras lanchas a jato, a Madame Crys, mesmo rebocando uma pequena lancha presa à sua proa por um cabo de aço, conseguiu chegar alguns minutos antes das “Noivas” e “Pumas” — nomes das outras lanchas a jato que saíram do porto de Manaus às quatro da manhã.
A aproximação do cais de Parintins despertou uma adrenalina no coração de todos nós. Imediatamente, os jovens passageiros, ansiosos pelas maravilhas que o festival oferece, não apenas no bumbódromo, mas em todo o Planeta Parintins, que se transforma em uma ilha da fantasia repleta de atrações sedutoras e orgasticamente arrebatadoras, começaram a se agitar. Havia algo no ar que denunciava numa ansiedade visível, expressada explicitamente por suas conversas que, o Festival de Parintins era apenas um pretexto para usufruir de todas as possibilidades que foram criadas como satélites do evento, com a finalidade da satisfação do prazer imediato.
Isso se tronava claro, quando, assim que embarcamos, a própria equipe da Madame Crys nos presenteou com pequenas mochilas personalizadas, ostentando a marca da empresa e dos bois de Parintins. Dentro delas, um “kit de motel” completo, com uma variedade de preservativos, sachês de lubrificantes, um copo plástico customizado e um mapa turístico ilustrado, com todos os locais de festas disponíveis em Parintins naquele fim de semana.
O sol do meio-dia nos recebeu no cais, já transpirando a euforia que a cidade reservava. A multidão de jovens, sedentos por orgias e aventuras, parecia não apenas eufórica, mas também inquieta, com rostos que denunciavam que suas "sedes de carne" não seriam saciadas tão facilmente.
A Madame Crys demorou um pouco a descer suas rampas sobre o cais, o que manteve os passageiros aglomerados, como se estivessem em uma corrida para ver quem desceria primeiro da lancha.
Diante daquele cenário, no mínimo estranho, comecei a rememorar as aventuras da minha juventude. Do alto do meu trajeto nababesco, comecei a me sentir igual ao "jumentinho" da poesia “Presepe” de Manuel Bandeira.
“.... Os anjos cantavam, que o menino viera para redimir o homem — essa absurda
Imagem de Deus! Mas o jumentinho, tão manso e calado naquele inefável,
divino momento, ele bem sabia que inútil seria todo o sofrimento
no Sinédrio, no horto, nos cravos da cruz; que inútil seria o fel e vinagre
do bestial flagício; Ele bem sabia que seria inútil o maior milagre; que inútil seria todo sacrifício. “
Mal a rampa da lancha tocou o concreto do cais do porto, e aquele "magote", impulsionado pelo ego exacerbado, avançou para fora da embarcação quase se assemelhando a um estouro de boiada, ávidos por chegar primeiro em algum lugar estabelecido pelo desejo imediato no âmago da fantasia de quase todos eles.
Como marinheiro experiente nesse mar turbulento e traiçoeiro, preferi aguardar que todos saíssem, pois a experiência me ensinou que tudo passa, e em poucos segundos aquilo que nos incomodava deixa de existir, e o mundo volta a sorrir tranquila e carinhosamente para nós.
Contemplei com certo ar de pena aqueles seres que pareciam se julgar livres enquanto eram manipulados por toda sorte de armadilhas que o apelo econômico colocou em seus caminhos, atraindo-os para cada uma delas, aprisionando-os sob o apelo libertário da alimentação do ego e da satisfação da libido.
Segui bem depois, calmamente, sob aquele sol causticante que se tornava mais inclemente com a parceria do vento, que parecia ter se recolhido para descansar, preparando-se para estar em forma na arena à noite. Não se sentia uma aragem passando naquele lugar, algo impensável quando se sabe que a floresta amazônica contribui com cerca de vinte por cento do oxigênio produzido pela fotossíntese no planeta, ou seja, um quinto do ar que respiramos. Contudo, naquela hora, naquele local, essa produção devia estar sendo exportada clandestinamente para algum país de primeiro mundo, por algum agente do garimpo clandestino, ou por um poderoso homem da soja, ou da pecuária.
A paisagem estava paralisada de tal forma que, se eu não soubesse que a Terra gira a uma velocidade de mais de 1.600 quilômetros por hora, e alguém viesse me dar essa informação ali no porto de Parintins, do jeito que tenho o pavio curto, eu seria capaz até de ofender a mãe dessa criatura, achando que estaria me tomando por um idiota.
Para quem conhece a indústria do turismo, fica evidente que, desde o cais, Parintins já demonstrava sua preocupação em receber bem os turistas, pois toda a estrutura é de excelente qualidade em todos os detalhes do material utilizado, com a predominância de metais inoxidáveis, pisos emborrachados e desenhos elaborados, formando um conjunto visual de muito bom gosto, sem espaço para improvisos ou "quebra-galhos" muito comuns nas cidades do interior brasileiro.
Desde o momento em que a embarcação se aproximou do píer, já se avistava a ponta do braço de um guindaste que o Caprichoso alugou para os seus espetáculos nesse festival, algo que sobressaía a todos os tetos da cidade, incluindo o do bumbódromo, que tem sete andares de altura no seu setor de camarotes, e o guindaste projetava quase a mesma altura acima dele.
Depois que a legião de eufóricos subiu a rampa do ancoradouro, de forma fervilhante, bem semelhante a um rebanho de cabritas que acabou de tomar vacina, e desapareceu, como que pulverizados e aspirados pelas ruas da "ilha da fantasia", segui devagar, observando os detalhes daquele lugar. A cada passo que dava, sentia uma sensação incrível por estar pisando naquela terra mágica, que tantas inspirações me proporcionava ao ver seus espetáculos em rede nacional, onde suas alegorias me hipnotizavam com seus movimentos e formas surreais. Sempre priorizei esse setor ao criar ou executar trabalhos como carnavalesco, de forma individual ou como membro de alguma equipe, no desenvolvimento de desfiles de escolas de samba.
Dispensa-se dizer que, no festival de Parintins, as alegorias são infinitamente mais extraordinárias e fascinantes. Hoje em dia, os artistas de Parintins trabalham para as escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo, exportando essa tecnologia de alegorias com uma mecatrônica singular, que eles desenvolveram e aperfeiçoaram.
Logo que alcancei a rua ligada ao cais, percebi o burburinho das pessoas, a grande presença do comércio de ambulantes e outros personagens vendedores de toda sorte de serviços pertinentes a qualquer tipo de evento no Brasil, além de outros realmente ligados ao conceito da magia da ilha, representantes da economia criativa que eu já sabia que ia encontrar naquele lugar, através da imagem grandiosa criada por um projeto de marketing que vende o festival para o mundo, como um dos mais perfeitos produtos culturais do Brasil.
Pelo que conheço da cultura brasileira, Parintins é o primeiro lugar do país a conseguir desenvolver a economia criativa em sua plenitude, utilizando o pretexto daquele famoso festival, que proporciona uma movimentação financeira gigantesca. Em 2024, apenas o recurso recebido por cada um dos dois bois foi de 12 milhões e 600 mil reais, sem considerar o que foi capitalizado pela venda de ingressos, comércio, hotelaria, aluguel de imóveis por temporada, transporte, restaurantes e bares, etc.
Além disso, o Festival de Parintins, atualmente é uma referência cultural do Brasil no exterior, assim como o Carnaval, tendo uma visibilidade tão grande que é o único evento no mundo que faz a Coca-Cola mudar de cor, pois, no lado do Caprichoso, lá no bumbódromo, ela nunca será vermelha e branca, nem que a vaca da mãe dela tussa.
Parintins é um lugar, onde a economia criativa acontece como deve ser, diferentemente do restante da maioria dos municípios brasileiros, onde em dias de grandes eventos se vê apenas as ruas lotadas de vendedores ambulantes, licenciados pela prefeitura, a peso da cobrança de alguma taxa, para venderem todo tipo de bebidas e bugigangas industrializados. O pior é que, muitas vezes, essas pessoas são terceirizadas, exploradas por grandes grupos que contratam aquela mão de obra barata para vender produtos comprados no atacado, sendo a maioria deles importados da China.
Muitos gestores e os seus secretários de cultura, confundem esses ambulantes com a cadeia produtiva da economia criativa. Um exemplo disso foi o Secretário de Cultura do Maranhão, que, durante o último carnaval, elogiou o comércio ambulante como um grande feito do governador para impulsionar a economia criativa do estado. O problema é que essa visão equivocada não é exclusividade desse secretário, cuja falta de conhecimento cultural é amplamente conhecida. Essa desinformação é um reflexo de uma postura deturpada e perversa que os governantes brasileiros têm em relação à própria cultura, entendendo-a como um objeto de despesa, devido ao tipo de coisas que eles inventam para colocar no lugar da verdadeira cultura local, quando o enunciado da Eco92, no Rio de Janeiro, declarou ao mundo pela primeira vez que, “O mercado do terceiro Milênio “ era mercado das ideias, pois o mundo deixaria de explorar as jazidas naturais para explorar as jazidas intelectuais, baseados no fato de que, naquele momento, Bill Gate, o homem mais rico do planeta explorava um projeto intelectual. Foi nesse evento que declararam o turismo como a grande indústria, principalmente, o turismo cultural, onde as pessoas visitariam outros povos para conhecerem as suas diferenças culturais.
É exatamente esse o ponto que nos faz estar tendo toda sorte de prejuízos não só pelo desmonte das culturas tradicionais, como pela falta d política de turismo decente, pois as secretarias de cultura e do turismo nos municípios brasileiros são dados em via de regra a pessoas que tenham “certo jeitinho “ para fazer desfile cívico, arrumar enfeites de natal, contratar bandas de funk e forró para o carnaval, e ajudar nos eventos das igrejas pentecostais.
O resumindo, o Brasil deixa de implementar políticas culturais e econômicas voltadas para a economia criativa, que poderia ser um grande atrativo para a indústria do turismo, e a redenção financeira das comunidades das periferias deste país.
Volto a afirmar que, no século XXI, a criatividade é a moeda mais valiosíssima que temos, e o povo brasileiro tem esse dom acima da média.
Enquanto perdemos esse barco da história, em todo o Brasil, prefeitos e governadores se aliam a uma máfia de produtores de eventos inescrupulosos que transformaram a política cultural brasileira em megaeventos com grandes estrelas, utilizando os recursos que deveriam incentivar a cultura local para pagar artistas financiados pelo agronegócio, como os "sertanejos". Chegam ao ponto de desviar recursos da saúde para financiar shows, como aconteceu em Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais, onde a prefeitura, em uma cidade de pouco mais de mil habitantes, gastou mais de 2,3 milhões de reais em shows de sertanejos, com dinheiro que deveria ser destinado à educação, saúde e infraestrutura. Nesse pacote estava o show de Gustavo Lima, que custou sozinho 1,2 milhão de reais. Há investigações sendo feitas sobre essas parcerias, pois existem suspeitas de que o montante pago nesses eventos é rachado entre empresários e gestores municipais e estaduais. Quem viver verá o desfecho dessa treta.
Enquanto isso, a verdadeira cultura e a economia criativa estão sendo desmontadas e jogadas pelo ralo, ao mesmo tempo em que a população brasileira é imbecilizada a passos largos, como parte de um projeto cruel de esvaziar o debate e tornar a população suscetível à aceitação da violência e do ódio como base para suas decisões sociais e políticas. Isso se reflete nos resultados bizarros das últimas eleições, com a eleição de figuras como um deputado chamado Abílio, cuja marca e projeto se resumem ao deboche em performances repugnantes, sem que ele jamais tenha apresentado um projeto ou proferido uma palavra digna de um parlamentar — ao menos em favor do povo que o elegeu.
Fazendo um apanhado geral do parlamento brasileiro eleito em 2022, salvo alguns deputados e senadores veteranos decentes (que são muito raros), o restante, se espremermos, por exemplo, as bancadas evangélica, ruralista, da bala e, especialmente, o PL, o sumo resultante deveria ser jogado no vaso sanitário e dado descarga imediatamente para não impregnar o ambiente com o péssimo odor. Nunca tivemos tanta gente perversa, despreparada e investigada no Congresso Nacional. É uma mostra evidente do efeito da mediocrização de um povo sem acesso à verdadeira cultura, pois, sem cultura, não existe educação e, muito menos, humanidade e riqueza.
É a cultura que nos torna civilizações distintas e nos diferencia dos animais. Vale ressaltar, mais uma vez, que a cultura e uma floresta preservada geram mais riqueza do que a exploração predatória que ambas estão sofrendo atualmente. A economia criativa transforma ideias em produtos ou serviços que geram valor econômico, cultural e social, impulsionando o desenvolvimento sustentável e criando empregos em diversas áreas criativas. Hoje, ela representa mais de 9% do PIB mundial.
Os bois de Parintins, assim como as escolas de samba, envolvem artistas como escultores, desenhistas, estampadores, bordadores, pintores, aderecistas, costureiras, marceneiros e serralheiros de arte. Em Parintins, foram mapeados os talentos locais, oferecidos treinamentos e capacitação em novas técnicas de produção e marketing, organizando-os em cooperativas, coletivos de produção ou oficinas individuais, para que desenvolvessem linhas de produtos inspirados na cultura local, refletindo a identidade dessa região.
Além desses produtores, durante o Festival, outros setores culturais oferecem workshops e experiências imersivas, onde turistas aprendem técnicas de dança, tocar instrumentos locais ou até mesmo criar suas próprias peças de arte e artesanato, além de festas temáticas, ou manifestações culturais locais, gerando renda com ingressos e em alguns casos, com a venda de produtos artesanais, etc. Esse tipo de atividade, não apenas gera renda, mas também fortalece o vínculo cultural com a comunidade.
No entanto, tudo isso só é possível com vontade política voltada para o desenvolvimento e bem-estar da população. A secretaria de cultura do Amazonas já se chama: Secretaria de Cultura e Economia Criativa”. Todavia, infelizmente, por pura ignorância, a maior parte dos governantes brasileiros ainda não perceberam que arranjos produtivos são uma poderosa forma de unir cultura e economia, transformando talentos locais numa fonte de renda sustentável para a comunidade, além de abrir portas para novas oportunidades de negócios, visibilidade cultural e desenvolvimento econômico sustentável.
A minha estrada de uma vida inteira dedicada a arte e ao desenvolvimento da cultura, além de, por duas vezes, ter sido secretário de cultura e turismo, conjugando o desenvolvimento local com essas duas atividades que se completam, segui empolgado por estar constatando in loco, aquelas conquistas da cultura e do trismo cultural que eu já conhecia por relatos do figurinista, meu amigo Helerson da Maia, integrante de equipe do Caprichoso, a quem devia o convite para estar ali, naquele evento. Feliz, tomei um táxi, e adentrei a ilha da fantasia, apreciando a atmosfera festiva que tomava conta da lendária Parintins, a capital do mundo aqui no Brasil, durante aquele fim de semana.
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