*Mhario Lincoln
Antes mesmo de passar por um problema de saúde, sempre às quartas-feiras, antes de ir para a Academia de Ginástica, passava por um Sebo/Livraria, nas proximidades, para descobrir livros e ideias novas. Numa dessas vezes me vi diante da obra "60 Poetas Trágicos", de Sergio Faraco, que teve o cuidado de selecionar 60 sonetos de 60 poetas cujas vidas foram interrompidas por tragédias.
Ele escreveu: "Dentro da tradição romântica de que os poetas morrem cedo, muitos foram os poetas cuja vida foi abreviada pela enfermidade ou por alguma tragédia, consequência de paixões arrebatadoras ou golpes do destino". Dentre esses, Gonçalves Dias (Caxias-MA), Tomás Antonio Gonzaga, Alvares de Azevêdo, Adelino Fontoura (Axixá-MA), entre outros. Então me veio a ideia: já que tinha me apaixonado pelo texto escrito por Machado de Assis - "O Alienista" – por que não cair em campo e descobrir personagens malucos dos belos romances escritos pelo Brasil e pelo mundo?
No caso, "mundo", outra paixão foi "D. Quixote" que a mim me pareceu ter deixado imensa dúvida, quando o li pela primeira vez, lá pelos anos 70. Afinal, todo esse tempo depois e a questão da sanidade de Dom Quixote continua sendo objeto de intenso debate no campo da literatura.
No fundo, o protagonista criado por Miguel de Cervantes continua deixando dúvidas pois parece habitar um universo de fantasia, "acreditando ser um cavaleiro destinado a grandes feitos", como escrito às primeiras páginas da edição que li em 1973. Mas essa percepção, realmente o caracteriza como louco? (Mais abaixo explico melhor).
A partir dessa premissa comecei a rodar o professor Google para descobrir um pouco mais sobre minhas convicções. Nessa aventura encontrei outros personagens também dignos de dúvidas, quanto à sanidade mental. Se não, vejamos: Simão Bacamarte em "O Alienista", como já havia citado acima, obcecado pela busca da definição de loucura, tem diversos habitantes da cidade em seu manicômio, muitas vezes por razões questionáveis. Sua dedicação extrema à ciência o leva a comportamentos tirânicos e insensíveis, levantando questões sobre quem realmente está fora da sanidade.
Outro: Luiz da Silva, em "Angústia" de Graciliano Ramos. Um funcionário público que vive em profunda solidão e miséria emocional. Consumido pelo ciúme e pela obsessão por Marina, ele desabafa com pensamentos paranoicos em relação a seu rival, Julião Tavares. Seu estado mental se deteriora ao longo do romance, refletindo angústias existenciais e sociais, não é mesmo?
E Paulo Honório, em “São Bernardo” de Graciliano Ramos? Posso incluí-lo em minhas dúvidas também? Ele é um ‘derrotado’ que narra sua própria história, revelando traços de frieza e manipulação. Sua obsessão pelo controle o leva a tratar pessoas como objetos, incluindo sua esposa Madalena. O que me chama a atenção e me leva à identificação paranoica é a incapacidade desse personagem de estabelecer conexões emocionais que evidencia um profundo isolamento e desequilíbrio psicológico. Será que estou certo?
Além desses clássicos, em minha cabeça também vieram figuras extremas. Duas delas: Raskolnikov e Hamlet. Concorda? Em "Crime e Castigo" de Fiódor Dostoiévski, Rodion Raskolnikov é um estudante pobre em São Petersburgo que acredita estar acima da moralidade comum. Ele assassina uma agiota para provar sua teoria, mas é consumido pela culpa e paranoia. Aí entra a lógica do romance clássico: a exploração da luta interna do protagonista entre o remorso e a justificativa racional de seus atos, ilustrando uma profunda crise psicológica.
E porque incluo - em meu bestunto, claro - Hamlet, de William Shakespeare, da mesma forma? Ora, porque o príncipe Hamlet enfrentou uma crise existencial após a morte de seu pai e o casamento imediato de sua mãe com seu tio. Daí, seu comportamento errático, incluindo diálogos com o fantasma do pai e atitudes impulsivas, me deu a chance de incluí-lo nessa lista (curta até demais), levantando minhas suspeitas sobre sua sanidade. Claro que a peça também explora temas de loucura, vingança e complexidade da mente humana.
Um detalhe, porém, quero confessar: a minha maior dúvida com relação a tudo isso é com pertinência a D. Quixote, lá no fundo meu ídolo (imoral) vamos dizer assim. Alguns poemas que compus para meus dois primeiros livros de poesia (e agora para o terceiro "O Sexto Sexo") tem como base de leitura D. Quixote, sim! Quem ler o livro vai notar em algum momento, passagens desconexas, muito ligadas a alguns pensamentos quixotescos.
Mas, voltemos à dúvida que me dói a cabeça até hoje e diz respeito diretamente à questão da sanidade de Dom Quixote - objeto de intenso debate no campo da literatura moderna. Portanto, e antes de quaisquer que sejam as minhas considerações ou de outrem, é fundamental ser levado em conta que personagens ficcionais não devem ser interpretados como pessoas reais. Porque uma "(...) leitura literal pode limitar a compreensão da obra literária em sua totalidade (...)", como aconselha Roland Barthes em "O Prazer do Texto".
Ora, quando Barthes parte desse entendimento, que "(...) o personagem não sofre de uma enfermidade mental no sentido clínico, uma vez que não 'existe' como ser humano", me gerou mais dúvidas ainda. Não que discorde, porém acredito ter Cervantes utilizado, sim, Dom Quixote, ficcionalmente ou não, para explorar a fuga da realidade percebida pelo protagonista, como quando enfrenta moinhos de vento acreditando serem gigantes, enxergando inimigos onde não há perigo real.
E vou mais longe ao dizer que Cervantes incita o leitor a refletir se a "loucura" de Dom Quixote não seria, na verdade, um símbolo para representar (quem sabe) um conflito entre a realidade prosaica e o idealismo heroico.
Mutatis Mutandi, sempre achei que a figura do louco na literatura muitas vezes serve para questionar as normas sociais e revelar verdades ocultas sobre a condição humana. Ou não? Como disse meu tio, Lister Caldas, lá em São Luís-Ma, na década de 60, quando era deputado federal: "... quem viver verá". Aliás, essa frase é dele, mesmo sendo nomeada a outros.
Mhario Lincoln é Presidente da Academia Poética Brasileira.