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De Socorro Guterres, “Áurea Variação”.

Socorro Guterres está na lista tríplice para a próxima vaga na Academia Poética Brasileira.

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: Socorro Guterres
09/01/2025 às 10h55
De Socorro Guterres, “Áurea Variação”.
Socorro Guterres

Socorro Guterres

   Numa visita ao Castelo de Praga me deparei com uma ruazinha estreita e peculiar, com casinhas minúsculas, atualmente de fachadas coloridas, e onde, outrora, viveram os trabalhadores que serviram ao castelo, ou seja, os artesãos, costureiras, armeiros, alquimistas e ourives, daí o nome Golden Lane ou Rua do Ouro. Era primavera e respirávamos o aroma de cores, chuvas e flores, na estação da renovação. Segui nesse clima de conto de fadas, que recria uma vila medieval, buscando especialmente um endereço: o número 22 , onde viveu, por algum tempo, o escritor Franz Kafka.


   Kafka marcou minha trajetória na literatura, assemelhando-se à influência de George Orwell, no inusitado da escritura e de seus aspectos distópicos, o que despertou em mim especiais reflexões. " A Metamorfose ", de Kafka, num abrupto realismo deixou-me frente a frente  com o inseto monstruoso em que se transformou o protagonista Gregor Samsa, o qual imediatamente associei ao bichinho que mais repugnância me causa, a barata, ainda que em disparidade de tamanho; embora na história não esteja explícita essa identificação, que pode ser traduzida como o grotesco ou o cruel na condição humana. 


   Mas, voltemos ao passeio na Rua do Ouro, para adentrar  a casinha pequenina desse autor extraordinário e quem sabe sentir a sensação claustrofóbica que nos é relatada no quarto de Gregor ao acordar transmutado em inseto gigante. Atualmente, Café e Loja de Souvenirs, a pequenina casa é convidativa, nada opressiva. Personagem e autor são diferentes, mesmo que em um possa se sentir a angústia do outro. Compro um livro na língua original, não sei o porquê, pois não a decifro, mas sinto como relíquia. Bebo um café fumegante no entardecer trazido por uma  brisa fria.  A sensação que tenho ao olhar o recipiente é que alguma perninha do temível inseto possa surgir do líquido escuro. Tão forte é o escrito kafkiano que a náusea transborda da ficção. 


   Folheio o  livro e relembro em minha língua materna a novela que questiona nossa identidade e a interação uns com os outros.  Revejo a dificuldade de Gregor em se comunicar com a família, já que tornou-se monstruoso e insuportável fardo. Nesse momento há muitos Gregors em suas diminutas casinhas, mas poucos terão a oportunidade de serem expostos ( ou libertos? ) em páginas criativas.  Sorvo o café na apreciação intranquila da realidade.  Posto-me diante da casinha 22  e registro o momento para repostar em alguma rede social, algo de certa forma previsto por Orwell no seu vigilante "1984". Deixo assim um rastro do meu eu no mundo, numa também carente tentativa de comunicação.

 

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Dalmario da Silva PaivaHá 1 semana NatalA professora e escritora Socorro Guterres é extraordinária! Parabéns.
Fatima GuimaraesHá 1 semana Natal/RNA escritura de Socorro Guterres é singular! Parabéns!
Fábio FreireHá 2 semanas Natal/Rio Grande do NorteSocorro Guterres nos surpreende com uma bela narrativa, rica em detalhes, destacando a nostalgia de um momento marcante, cuja memória encontra-se vivíssima no coração da autora.
Claudiana Meneses Há 2 semanas Rio Grande do Norte ???????????? Mais uma narrativa maravilhosa. A gente viaja junto.
Rosineide Há 2 semanas NatalAdoro suas narrativas, Socorro. Parabéns.
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