*Mhario Lincoln
“(...) se soubesse minha força, levitava.
Em outras, tanta foi a tristeza que fiz versos.”
— Adélia Prado, poema sem título de Bagagem (1976).
Pela primeira vez li um José Neres fora de suas quatro linhas, porém, mas dentro de sua capacidade indelével de condensar numa narrativa de poucas palavras, um catálogo de violências que acompanha a narradora desde o nascimento – violência obstétrica, sexual, econômica, simbólica – e revolve tudo em torno de um único vocábulo: “força”. Incrível!
Mas o que realmente me chamou a atenção foi o uso de palavras e termos que, confesso, ainda não tinha lido de forma direta, em nenhum dos textos conhecidos por mim, até agora. Exatamente neste microconto de aparência clássica tive essa primeira experiência e entendi, (enquanto “foco narrativo” estagnado num presente cerimonial), tratar-se de um “clímax psicológico”, que me revelou o verdadeiro sentido do título.
Vale explicitar, ainda, que ao contrário do que se possa pensar, Neres, com uma lógica privilegiada e, por utilizar linguagem descritiva e vívida, discorreu com substantivos concretos (“pênis”, “correnteza”, “caixão”), para dar a entender ao leitor essa ‘materialidade da violência’. Sutil, direto, todavia, muito escrupuloso.
Acho que que Neres usou toda a construção para mostrar suas qualidades enquanto contador de histórias porque esse conto torna-se, ao fim, um estudo da palavra, enquanto punho que se ergue contra o corpo frágil, mas também enquanto libera energia interna de alta octanagem, que impede o colapso (do leitor e da personagem).
Basta acompanhar o efeito de tremor que ela sente ao ler a mensagem funerária. Neres alcança essa ambiguidade recorrendo a frases longas, ligadas por parataxes, que reproduzem a torrente de memórias; cada anáfora - “da força” - bate como um martelo, aproximando a cadência da prosa à pulsação de um poema em verso livre.
Grandes roteiristas vendedores de prêmios internacionais, sejam em novelas ou filmes de longa-metragem também chegam a atingir esse “clímax”, usando das técnicas linguístico/sentimentais; os “flashbacks”, até o ponto de viragem irônica — o instante em que o sorriso diante do caixão ameaça explodir em gargalhada — e aqui o texto explode naquilo que Mikhail Bakhtin, esse incrível filósofo da linguagem, historiador e teórico da literatura e da cultura russo, poderia entender como “riso sacrilégico” desmascarando a hipocrisia social que sempre exigiu da mulher-vítima, a postura de “vítima silenciosa”, até neste 2025, ainda muito vívido.
Destarte, a maneira como Neres transforma lembrança traumática em discurso literário aproxima-o da “escrevivência” de Conceição Evaristo, cujo princípio é deslocar relatos de dor para o centro do ato estético. Em “Olhos d’Água”, Evaristo anota: “Se ao menos o medo me fizesse recuar, pelo contrário, avanço mais e mais na mesma proporção desse medo. É como se o medo fosse uma coragem ao contrário.”
Portanto, a frase “Força” ecoa nos quatro cantos do texto mostrando que cada agressão sofrida também empurra a personagem adiante, ainda que o avanço se confunda com o simples continuar viva. Como fiquei igualmente “forte” quando Neres evidencia seu corolário sombrio: os encargos heteropatriarcais não se limitam ao serviço doméstico; estendem-se à exploração sexual, ao controle reprodutivo, à interdição do luto.
Uma tia que vigia, pune e silencia. Opera como agente dessa ordem, e sua morte abre uma fissura onde a protagonista experimenta, pela primeira vez, um riso que é quase vingança. Mutatis Mutandi, penso eu, que esse riso tem parentesco com a gargalhada incendiária de Sylvia Plath no final de “Lady Lazarus”: “Out of the ash / I rise with my red hair / And I eat men like air.” (Ou seja, “Das cinzas, eu me levanto/ com meu cabelo ruivo/ E devoro homens como ar”).
Enquanto Plath encena a metamorfose da vítima em fênix vingativa; Neres suspende o gesto no limiar — a personagem ainda precisa “fazer força” para não rir alto demais, pois sabe que o mundo não perdoa mulheres que zombem dos ritos do sofrimento. Ipsis verbis: a tensão entre explosão e contenção, morte simbólica e renascimento, mantém o conto vibrando depois do ponto final.
Exatamente como estou agora. Eu li ontem, mas durante a noite acordava e anotava o que me levou a escrever sobre Neres, hoje. É impossível ler esse texto e não autorreverberar diante de inúmeros casos que explodem diariamente nas cenas cotidianas deste Mundo abstrato e babélico. Na verdade, um microconto com “força” suficiente para fazer pessoas “iguais” que o lerem, repensar a reprogramação de suas vidas. Parabéns, Neres. Fiquei por demais feliz em lê-lo e entendê-lo.
Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.
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O original:
FORÇA
José Neres
Desejo-lhe muita força neste momento tão difícil de sua vida.
Aquela mensagem deixada em uma rede social por uma amiga a quem não via há mais de duas décadas fez com que ela estremecesse da cabeça aos pés.
Teve que pegar o ônibus às pressas para não perder aquele momento.
De todas as palavras da língua portuguesa, aquela era a que mais lhe causava medo - força.
Lembrou-de quando a tia lhe narrara a força que sua mãe havia feito para que ela nascesse em um parto complicadíssimo. O resultado foi nunca ter conhecido a própria mãe e passar a vida sendo considerada culpada pela família pela morte de Dona Inês.
Lembrou-se também da força do braço erguido daquele homem a esbofetear sua cara quando lhe negou um beijo depois da festa da igreja. Da força para tentar se desvencilhar dele quando, certa madrugada, ele invadiu o quarto. Da força daquele pênis ereto a invadir suas carnes. Da força que fazia ao vomitar escondida sem poder contar que estava grávida. Da força que fez para suportar a dor de ter aqueles objetos dentro de si cortando aquele inocente que não poderia nascer. Da força da correnteza que, durante uma tempestade, levou para um bueiro os restos de um filho que jamais conheceu. Da força que fazia naquele trabalho pesado que executava seis vezes por semana para se sustentar seus precisar ouvir humilhações
Não. Definitivamente não. Estar ali no enterro daquela tia que a criou como se fosse uma estranha, que tantas vezes a obrigou a dormir com fome, que fingiu não perceber os repetidos abusos sexuais que ela sofrera, que a obrigara a tirar a criança para não incriminar o tio bêbado e tarados não era um dos momentos difíceis de sua vida.
Agora, ali, diante do caixão aberto, era preciso fazer força para não transformar aquele singelo sorriso de canto de boca em uma alegre gargalhada.