«Queria» ou «quer»?
O mais famoso mito da língua é mesmo o «queria ou quer» que tanto se ouve por aí.
Sim, muitas vezes é apenas uma brincadeira. Mas, de vez em quando, lá se encontra alguém genuinamente convencido de que não se pode dizer «queria aquele livro, por favor», porque «queria» está no passado. Ora, os tempos verbais têm muitos usos, alguns deles bastante subtis. O pretérito imperfeito serve, muitas vezes, para demonstrar cortesia.
Não é nada de extraordinário: é uma questão de educação...
«Copo de água» ou «copo com água»?
Um lindo dia alguém acordou e pensou: ora, um copo não é feito de água. Logo, não devo dizer «copo de água». Tem de ser «copo com água»! A ideia é tonta, mas espalhou-se...
É verdade que a preposição «de», por vezes, implica que alguma coisa é feita de outra coisa («casa de madeira»; «tecido de algodão»). Mas, no caso do «copo de água», o significado é outro: a preposição liga um recipiente ao seu conteúdo. Usamo-la com esse sentido em expressões como «colher de açúcar», «camião de areia», «balde de tinta», entre muitas outras. Todos nós percebemos bem o significado – até porque dificilmente estaríamos a falar de copos feitos de água, de colheres feitas de açúcar, de camiões feitos de areia ou de baldes feitos de tinta...
Ou seja, este mito aparece porque há quem não repare numa característica tão óbvia de muitas palavras: têm vários significados...
«Cor de burro quando foge» ou «corro do burro quando foge»?
«Cor de burro quando foge» é uma expressão idiomática da língua. É uma espécie de piada – se não sabemos bem qual é a cor, dizemos que é a cor do burro quando foge. Mas há quem não perceba piadas… Encontrei mesmo uma página na Internet que perguntava, indignada, se o burro muda de cor quando foge! O que dirão estas mentes literais perante os provérbios ou expressões idiomáticas tão pouco lógicas quanto deliciosas que a nossa língua tem?
Como há sempre quem goste de inventar, lá surgiu a versão alternativa, supostamente correcta: «corro do burro quando foge». Uma expressão lógica, sensata… Só é pena não ter piadinha nenhuma… Direi mais: mesmo que agora se provasse que esta foi a origem distante da tal «cor de burro quando foge», a verdade é que as expressões têm percursos muito sinuosos – e o facto da língua é que, em português, a expressão idiomática habitual é «cor de burro quando foge».
«Bicho-carpinteiro» ou «bicho pelo corpo inteiro»
Também há quem não veja com bons olhos o bicho-carpinteiro — porque (dizem) não existe...
Por amor da santinha! O bicho-carpinteiro existe mesmo — pelo menos no corpo das crianças irrequietas! E, não, a versão «bicho pelo corpo inteiro» não é a alternativa supostamente correcta. É apenas uma expressão com um som vagamente parecido.
Mas, admito, ao contrário do «corro do burro quando foge» (que expressão sem sal!), este «bicho pelo corpo inteiro» tem muita graça. As crianças, às vezes, têm mesmo um bicho pelo corpo inteiro: o famoso bicho-carpinteiro!
«Quem tem boca vai a Roma» ou «quem tem boca vaia Roma»?
Quem tem boca vai a Roma: este velho ditado, antiquíssimo e presente em várias línguas, lembra-nos de que, se precisarmos de alguma coisa, podemos começar por pedi-la. Mais: se quisermos ir a algum lado, mais vale usar do bom e velho desenrascanço...
Pois, lá nos aparecem, por vezes, umas mensagens por correio electrónico a explicar, com duvidosa sabedoria, que o ditado correcto é «Quem tem boca vaia Roma!». Ou seja, quem sabe falar diz mal de Roma.
Se alguém quiser usar esse outro provérbio um pouco mais recente, esteja à vontade. Mas a versão que mais usamos e que, ainda por cima, é mais antiga, mais bela e mais expressiva é: «Quem tem boca vai a Roma!».
Mas porquê tanta invenção?
Há muitas mais mentiras da língua: «fazer a barba» é erro (não é), «sorriso nos lábios» é um pleonasmo (nem por isso), «já agora» é uma redundância (também não é), «beijinhos grandes» não fazem sentido (o que não faz sentido é essa maneira de olhar para a língua).
Se o meu caro leitor já alguma vez tiver caído numa destas patranhas, não se aflija! Todos nós tropeçamos em engodos mais tarde ou mais cedo. O truque é mesmo desconfiar, pensar um pouco – e, já agora, respeitar um pouco mais a maneira como a língua funciona na realidade.
Mas, depois disto tudo, falta perguntar: por que razão é tão fácil cair nestas patranhas? Dei alguns exemplos de mentiras numa área muito particular: a língua. Mas rodam por aí mitos destes sobre todos os assuntos e mais alguns — e há temas bem perigosos, como a medicina, em que as ideias erradas podem, de facto, matar. Imagino que quem me lê já terá ouvido inúmeras ideias falsas sobre a área que mais conhece...
Desconfio que estes mitos se espalham com facilidade porque alimentam a crença de que vivemos num mundo de ignorantes — e gostamos de acreditar que somos parte do restrito clube dos que não são nem ignorantes nem muito menos estúpidos. Se alguém nos disser que todos dizem mal «copo de água», passaremos a dizer com orgulho «copo com água» — será uma medalha que atesta a nossa esperteza!
Esta atitude, no que toca à língua, é fatal: passamos a dar mais valor a uma qualquer lógica de algibeira do que à observação atenta da maneira como a língua funciona. É um pequeno exemplo daquela arrogância que leva às certezas fulminantes, bem mais perigosas do que a ignorância.
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