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Um texto por demais importante: “Direito e Literatura”, do professor e acadêmico José Neres

José Neres é membro-efetivo da Academia Poética Brasileira e foi indicado, ontem, para o cargo de Vice-presidente Regional da APB, no Maranhão, a partir de 2026. (Bem-vindo).

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: José Neres
03/06/2025 às 11h00 Atualizada em 03/06/2025 às 11h07
Um texto por demais importante: “Direito e Literatura”, do professor e acadêmico José Neres
Arte: MHL

 

José Neres. Professor convidado pela APB

 

Todos os grandes juristas que conheço demonstram um imenso interesse pela leitura em geral e, particularmente, pela literatura. É fato corriqueiro encontrar operadores do Direito – advogados, promotores, juízes, desembargadores... conversando acerca da viabilidade da leitura de alguma obra à luz de alguns preceitos jurídicos. Sem contar que a literatura, serve como fonte de argumentação para diversas sustentações orais dos operadores do Direito.

É também bastante comum encontrar nas faculdades de Direito a formação de grupos de estudos dedicados a dissecar o inter-relacionamento entre teatro, poesia e prosa de ficção com as questões teóricas levantadas por professores e/ou demais convidados. Embora algumas pessoas possam considerar essa prática meio artificial, trata-se de um excelente recurso para aproximar os futuros profissionais de situações que, embora sejam fictícias, encontram alguns reflexos nas questões cotidianas.

A seguir, comentamos uma pequena lista de livros que mantêm algum tipo de relação explícita entre esses dois importantes campos do conhecimento humano. Claro que é uma lista pessoal, cheia de lacunas, e que pode ser ampliada por qualquer outra pessoa que se interesse pela temática.

Alguns livros são constantemente revisitados quando o assunto é o entrecruzamento entre a Literatura e o Direito. Um deles é “O Processo”, uma das obras-primas escritas pelo escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924). Desde as primeiras linhas do romance, quando o narrador anuncia que “Alguém deve ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal”, o leitor já começa a mergulhar em um emaranhando de questões que podem ser discutidas quanto à legalidade das ações e quanto aos métodos empregados pelos perseguidores. É uma obra indispensável a quem já enveredou ou pretende enveredar pelos terrenos do Direito e que considera a literatura como parte de sua formação.

Outro livro que abre caminho para muitas discussões é “Crime e Castigo”, de Fiodor Dostoiévski (1821-1881). Logo ao entrar em contato com a figura de Raskólnikov, o jovem que “não estava acostumado com multidões e [que] nestes últimos tempos, sobretudo, fugia do convívio de seus semelhantes”, o leitor mais atento percebe que aquela personalidade arredia dará margens para um mergulho na essência humana, com implicações jurídicas de seus atos.

Uma obra que oferece diversas possibilidades de leitura e que destina uma atenção especial às questões relacionadas com o Direito é “A Confissão de Lúcio”, romance de Mário de Sá-Carneiro (1890-1916). O interesse do narrador desde o início do livro é convencer o público de que ele – Lúcio – não foi o responsável pelo crime de que foi vítima seu melhor amigo – Ricardo de Loureiro. O fato de Lúcio haver estudado Direito na Faculdade de Paris e de conhecer os meandros do Direito Processual da época serve como elemento complicador para a narrativa. Esse livro oferece também excelente oportunidade de estudo sobre a psicologia humana.

José Neres

Ainda relacionado com aspectos legais e psicológicos, temos o romance “Dom Casmurro”, um dos livros mais conhecidos de Machado de Assis (1839-1908). Ainda hoje, o livro desperta o interesse pelas questões relacionadas às relações parentais. Há inúmeros casos em que os professores utilizaram esse livro como base para a criação de júris simulados, principalmente com ênfase na centenária questão envolvendo a dúvida sobre o adultério (ou não) de Capitu. Porém além disso, o livro também pode dar margens para outras discussões envolvendo o Direito de Família.

As relações familiares podem também ser bastante exploradas no “Livro de uma sogra”, de Aluísio Azevedo (1859-1913). Nesse romance, o autor apresenta aos leitores um (para a época) inusitado contrato de namoro envolvendo um jovem apaixonado, sua amada e a futura sogra. O que hoje pode ser visto com algo corriqueiro deve ter despertado al longo do tempo muitas discussões acerca da legalidade ou não de tais contratos.

Muitas são as obras que poderiam trazer à tona as discussões sobre os Direitos Humanos, porém, neste breve artigo, vou ater-me a apenas dois trabalhos artísticos: o poema “Hombre preso que mira a su hijo”, de escritor uruguaio Mario Benedetti (1920-2009); e o romance “Os que bebem como os cães”, do romancista piauiense Assis Brasil (1929-2021). Em ambos os casos, as personagens são vítimas de torturas por parte do Estado e, privadas de liberdade por conta de acusações hipotéticas fundamentadas principalmente em um olhar totalitário que é denunciado em cada linha dos textos. As imagens exploradas pelos dois escritores são chocantes e rementem a diversos questionamentos sobre os direitos primordiais que tantas vezes são negados às pessoas.

“Incidente em Antares”, de Erico Veríssimo (1905-1975), é outro livro que traz muitas questões jurídicas que podem ser discutidas, desde as relações trabalhistas – importante notar que boa parte da narrativa se passa durante um movimento grevista ocorrido naquela cidade fictícia – passando pelas muitas lições de Direito Eleitoral e Direito Administrativo aventadas durante o famoso embate verbal entre o advogado Cícero Branco e o meritíssimo juiz da cidade. Ao logo da história é também levantada a dúvida sobre se os mortos teriam ou não que obedecer aos ditames legais preconizados pelos códigos judiciais que foram escritos para tratarem exclusivamente de pessoas vivas. O livro trata ainda de Direitos Humanos, relações familiares, corrupção, fraudes e de tantos ostros assuntos que podem ser estudados nos cursos de Direito.

Um dos casos judiciais mais controversos do final do século XIX, o crime cometido pelo desembargador Pontes Visgueiro contra a menina Maria da Conceição, conhecida como Mariquinhas já foi explorado em diversos trabalhos de cunho jurídico, mas também serviu de base para a elaboração do romance “A Tara e a Toga”, uma livre adaptação literária escrita pelo romancista maranhense Waldemiro Viana (1946-2020). A partir da leitura desse livro, é possível explorar diversas situações jurídicas envolvendo as personagens e os acontecimentos que servirão como base para a elaboração da narrativa.

A relação da literatura com os direitos de pessoas menores de idade pode ser discutida a partir da leitura de livros como “Capitães da Areia” (Jorge Amado, 1912-2001); “Aracelli, meu amor” e “Pixote: A infância dos mortos” (José Louzeiro, 1932-2017), “Querô” (Plínio Marcos (1935-1999), “O Estudante” (Adelaide Carraro, 1926-1992), “O alucinado som de tuba” (Frei Betto, 1944), “A rebelião dos órfão” (Assis Brasil, 1929-2021) e “Um destino provisório” (Lucy Teixeira, 1922-2007). Sendo que o último livro citado foi escrito a partir das observações da autora, que era graduada em Direito,  com relação a uma lei específica a ser aplicada em caso de ato delituoso cometido por menores em situação de conflito com a lei. Dessas observações, nasceu esse belo e contundente romance.

Esses são apenas alguns exemplos de obras que fazem o entrecruzamento da Literatura com o Direito. Mutas outra poderiam ser citadas, como é o caso de “O sol é para todos” (Harper Lee, 1916-2016), “A firma” (John Grisham, 1955), “1984” (George Orwell (1903-1950), “A sangue frio” (Truman Capote, 1924-1984), “O casamento” (Nelson Rodrigues, 1912-1980)... Porém a lista jamais se esgotará. Ainda bem! Já que são duas áreas que estão sempre se renovando e trazendo novos olhares e novas produções.

O importante é continuar lendo... e estudando.

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Dr. Lima FilhoHá 2 semanas São Luís do MaranhãoOi Neres. Vou de DOUGLAS CECCAGNO. No cruzamento transdisciplinar entre o Direito e a Literatura, existe a necessidade de aproximar conceitos, de modo que as teorias que dão sustentação a uma área sejam, em certa medida, aplicáveis à outra. O objetivo deste trabalho é ensaiar uma utilização, no estudo da Literatura, do conceito de verdade real, que provém dos estudos jurídicos, através de sua relação com os conceitos de mimese, realismo e verossimilhança.
Dr. Marcus Frota JuniorHá 2 semanas São Luís MaNão há como separar tais eventos: o literário e o jurídico. O acesso à literatura e à educação é considerado um direito humano fundamental, pois contribui para o desenvolvimento intelectual, emocional e crítico das pessoas, além de fomentar a consciência social. A literatura pode ser vista como um direito social que ajuda a construir uma sociedade mais justa e igualitária.
alcina maria silva azevedoHá 2 semanas Campinas- SPUm texto rico e pleno de informações importantes. Parabéns ao confrade José Neres!Parabéns ao Mhario Lincoln por sempre nos oferecer conhecimento.
Prof. Abdon Costa MoraesHá 2 semanas Maceió-ALProfessor Neres, infinitamente feliz em reencontrá-lo aqui nesta riquíssima plataforma. Lembro a todos que essa pesquisa é importantíssima. Assim, lembro o título "Direito e Literatura: os Sertões como Interpretação do Brasil", de Douglas Amorim de Melo, que faz uma análise da clássica narrativa "Os Sertões", de Euclides da Cunha, revelando como a literatura pode ser ferramenta de interpretação sociológica e jurídica da realidade brasileira. LINK https://bdtd.ibict.br/
Joizacawpy Há 2 semanas São luís Excelente texto. Obrigada Neres, de fato o direito requer múltiplos conhecimentos e recursos para sua sua atuação eficiente, a literatura com certeza contribui muito para entendimentos de diversos contextos que cabem no campo do direito. Sendo assim o conjunto cultural que envolve a literatura e arte de fato são aliados benéficos nesse campo do conhecimento.
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