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"SOBRE VALENTES E VALENTÕES --(PARTE II), de Edmilson Sanches

Um passeio memorial, rápido, pela Literatura, pelas histórias em quadrinhos, pelos cordéis, pelo Cinema, pela Música, pela vida...

04/09/2024 08h40
Por: Mhario Lincoln Fonte: Edmilson Sanches
Parte II
Parte II

(PARTE II)

Edmilson Sanches

E faltaria espaço pra tantos valentes e valentões na Música, como nas composições de Luiz Gonzaga com Zé Dantas (o “sujeito valente e brigão” em “Forró de Caruaru”, de 1955) e com José Clementino, no icônico “Xote dos Cabeludos”, que seria uma “resposta” do Rei do Baião para outro “rei”, Roberto Carlos, que teria feito uma desfeita ao sanfoneiro pernambucano. Eis a descrição de um homem valente no xote:

“[...]
No sertão de cabra macho
Que brigou com Lampião
Brigou com Antônio Silvino
Que enfrenta um batalhão
Amansa burro brabo
Pega cobra com a mão
Trabalha sol a sol
De noite vai pro sermão
Rezar pra Padre Ciço
Falar com Frei Damião
[...]”.

No Cinema, nem se fale! É valente e valentão pra todo lado, na Terra e fora dela, com seus heróis e vilões armados com as próprias mãos (artes marciais e fortões tipo Hércules, Ursus e Maciste), com revólveres (faroeste), com armas de raios (ficção científica) etc. Conan, Dirty Harry, Braddock, Rambo, Shaft, enfim, do “A” do Aquaman ao “Z” do Zorro, é gente valente por toda a terra, água e ar...

Voltando à Literatura, fora das menções ao ciclo carolíngio e ao reino arturiano, Guimarães Rosa nos apresenta o valente Manuel Fulô e o valentão Targino, no conto “Corpo fechado”, de “Sagarana”. A “Bíblia” traz valentes aos milhares; a meu ver, um exemplo de valente é Davi e, de valentão, Golias.

As citações acima, nas diversas formas de expressão cultural (Literatura, Música, Cinema, Cultura Popular etc.), impõe que seja feita a distinção entre o que é “valente” e o que é “valentão”. Valente é uma virtude; valentão, uma deformação. Valente, em geral, é o que uma pessoa é; valentão, via de regra, é o que lhe atribuem ser. Para mim, valentão é arruaceiro, provocador, brigão, quando não um mero bravateiro, farsante, fanfarrão.

Esse “-ão” em “valentão” não é um intensificador da palavra; é um corrompedor dela, como em “respondão”.

Esse “-ão” em “valentão” não é um aumentativo; paradoxalmente, é um diminutivo, desqualificador, depreciativo.

Neste livro, a preponderância do termo “valentão” sobre “valente” e “valentia” é quase sempre um espelho, em que se vê, invertida, a imagem do outro. Por mais realística que seja, é reflexo e é o contrário da realidade.

Mulheres e homens que conheceram Ricardo Constâncio descrevem-no como “um moço muito bonito, educado e respeitador”. O próprio Ricardo Constâncio declara que “nunca havia nem sonhado de ser valentão ou coisa parecida”. O autor, de certa forma, ratifica isso quando, tanto no fim quanto na introdução, ressalva: “[...] não há relatos de que Ricardo tenha algum dia matado por encomenda ou para roubar” e “pensamos não ser justo pintar Ricardo Constâncio como um bandido celerado e de coração duro. Mas também não adianta querer retratá-lo como bonzinho. Nada de extremos”. João Pereira Neto sabe: “In medio virtus”. Nem ladino nem paladino.

Considerada essa distinção, apresenta-se, nesta obra, o moço Ricardo Gomes, o Ricardo Constâncio, pessoa histórica, isto é, verdadeira, real, que existiu mesmo. Casou-se, teve uma filha, tinha trabalho e endereço certos. João Pereira Neto o descreve com habilidade de escritor e leveza de um bom contador de “causo”. Nem parece que são rarefeitas as fontes para a pesquisa e construção de “Assim Tombou Ricardo Constâncio”. Talvez o mais que houvesse agora seja expletivo.

Com “Assim Tombou Ricardo Constâncio”, a boa Literatura maranhense e brasileira enriquece seu rol de personagens intrépidos, corajosos, valentes. João Pereira Neto, jovem, mas experiente juiz de Direito, está acostumado à dura prática diária da escrita – mas uma escrita que decide liberdade, patrimônio e valores intangíveis de pessoas, nos limites quase inflexíveis da Lei.

Sair desse cotidiano não é fácil, o que torna mais admirável esta pequena grande obra – no gênero, a primeira do autor. Entretanto, se, em seu mister, o juiz sentencia sobre Liberdade, Patrimônio e Valores, o escritor, em seu mistério, não é diferente: o personagem Ricardo Constâncio luta por liberdade legal, ao querer ajustar contas com a Justiça, e defende o patrimônio, material e moral, seu e de outros.

A Literatura ganha um estilista, pesquisador e documentador/descrevedor de falas, ambientes, situações. Nem o incômodo de ombro seriamente dolorido, que o levou à terapia física e a esta terapia literária, minou-lhe o bom humor, o (re)lembrar-se de aspectos da vida que ele próprio, autor, viveu e que reviveu em uma e outra passagem deste seu primeiro filho literário.

Como não gostar dos gostosos achados e descrições dados aqui à leitura pelo autor? “Dia de feira era, quase sempre, dia de facadas [...]”. “Aqui se mata por devoção [...]”. “[...] a Justiça daquele tempo era cara, lenta e rara, sendo vantajosamente substituída pela sentença do trabuco, que era definitiva, não admitia recurso”. Lei mesmo? Só “o bacamarte, o cacete, a faca”, “sem receio das fraquezas dos juízes e das patifarias dos jurados, sempre escolhidos a dedo”.

Ao relatar a briga entre o valente Ricardo Constâncio e o valentão Negão do Sul, João Pereira Neto alia à competência descritiva um “humour” na medida: “Ricardo não perdeu tempo e deu uma forte bofetada em Negão, que caiu de queixo trancado por cima de uma mesa de tábua de bacuri. Nisso, aparece o pai de Negão, chamado Isidoro, que morava em Caxias, e entra na briga. // Isidoro estava portando um cacete de jucá, assado ao fogo, duro mais do que beirada de sino [...]”.

Que beleza o trazer-se para aqui essa riqueza de imagens e analogias do interiorzão maranhense!... Que autoridade a do escritor, ele próprio, menino, um (con)vivente dessas realidades da gostosa linguagem cabocla, interiorana, com um belo e delicioso repertório de comparações e paralelismos semânticos!...

Ilustração: Ricardo Constâncio em xilogravura.

“Assim Tombou Ricardo Constâncio” recupera uma história de vida (e morte), de – “O tempora! O mores!” – um tempo que se (es)vai, de “homens de gênio forte e desassombrada coragem”, de gente que ousava “comprar questão”, de um povo “façanhudo” que nem Ricardo Constâncio, que, valente, “não costumava comprar valentia, mas também não era homem de vender covardia”.

Se não é um libelo acusatório, este é também um livro denunciatório... pelo menos em relação às práticas e modos de ser de ontem (ontem?) da Justiça, da Polícia, da Política, vale dizer, do Estado – um Estado corrupto e corruptor, desservidor e prejudicador dos cidadãos. Veja-se a descrição forte, precisa, exata de João Pereira Neto...

... sobre a Polícia: “As delegacias, com raríssimas exceções, estavam entregues a indivíduos analfabetos, servindo de cegos instrumentos de obediência partidária, sob a influência nefasta de desabusados chefetes políticos e sem os livros exigidos para registro de ocorrências, queixas-crimes, licença etc.”.

E sobre os desvios da Política por desviados políticos: “[...] a Guarda Municipal, mantida pelas Prefeituras do interior, existente em diversos municípios do Estado, formava um quadro de política roceira, sendo constituída por homens a serviço particular do prefeito, do delegado e de outras autoridades, pessoas que nada mais eram do que rachadores de lenha, tiradores de palmito ou tratadores de animais e que, nas horas vagas, faziam a correição, matando nas ruas e fundos de quintais os animais de propriedade dos adversários políticos, quando não podiam, por outro meio, satisfazer o seu capricho partidário”.

João Pereira Neto é um desses escritores que faltavam. Desenvolve, com primor, uma técnica de períodos curtos: nos originais à minha frente, em mais de cento e oitenta parágrafos de seu texto (com linhas de, em média, oitenta caracteres com espaço) apenas nove parágrafos tinham mais de cinco linhas e nenhum chegou a dez linhas. Uma qualidade ou um estilo, ou os dois – sem qualquer contraindicação, em especial nestes tempos de preguiça de ler, de acomodação mental, de consumo imagético via “smartphones” (estes aparelhinhos que, em geral, têm mais “esperteza” e conteúdos que seu manipulador).

Como a previamente querer desencorajar louvores por ou para esta obra, o autor diz, em “ponto final”, que, apenas, contou o que ouviu contar – o que, assim, digo-o eu, tornaria a obra uma realização coletiva e o autor mero escrivão da frota (de gentes).

Nesta sua obra primogênita, João Pereira Neto afirma que não há “pretensão literária alguma” e não intenciona “obter rasgados elogios”. (Fazendo blague, no caso deste prefácio pelo menos, os elogios vão inteiros...).

Neste livro, portanto, uma boa história, escrita com excelência.

***

Com valentia. Assim lutou, assim viveu e assim tombou Ricardo Constâncio.

Com mestria. Assim contou muito bem contada a história João Pereira Neto.

Parabéns, João Neto!

Bem-vindo ao clube.

EDMILSON SANCHES

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Sobre Edmilson Sanches
Edmilson Sanches é um dos intelectuais brasileiros mais aplaudidos em diversas áreas da literatura contemporânea. É jornalista, consultor, palestrante, editor, bacharel em administração pública e licenciado em letras.
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