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"SOBRE VALENTES E VALENTÕES" - (Parte I), de Edmilson Sanches

Um passeio memorial, rápido, pela Literatura, pelas histórias em quadrinhos, pelos cordéis, pelo Cinema, pela Música, pela vida...

04/09/2024 às 08h48 Atualizada em 04/09/2024 às 08h56
Por: Mhario Lincoln Fonte: Edmilson Sanches
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Edmilson Sanches. (Divulgação)
Edmilson Sanches. (Divulgação)

(Parte I)

Edmilson Sanches

(Prefácio ao livro “Assim Tombou Ricardo Constâncio”, inédito,
de João Pereira Neto, Juiz de Direito em São Luís - MA)

***

Era boquinha da noite. Conta-se que o homenzarrão chegou ao povoado do qual se dizia ser terra de gente valente.

O homão não viu ninguém nas ruas. Aparece um menino e ele, rude, pergunta: “– Cadê os homens daqui?” O garoto aponta um bar logo adiante.

Foi entrando e já foi insultando: “– Este lugar não tem homem, não? Cadê os cabras valentes daqui?” E foi enticando os presentes. Enfiava o dedo nos peitos de cada um e questionava: “– É você o valentão daqui?”

Quando o indicador em riste do valentão foi se chegando ao peito de um baixinho que pitava seu fuminho tranquilamente, o homenzarrão finalmente ouviu uma resposta: “– Seu moço, neste lugar, num tem nem um valentão, não; porque os que chegam aqui... nós mata!”

O grandão recém-chegado ainda teve tempo de revirar os olhos, tentando aparar com as mãos o sangue e os intestinos que, aos borbotões, em evisceração, começavam a sair de seu bucho, aberto de cima a baixo e de lado a lado por uma afiadíssima faca peixeira que, com modos de prestidigitador, o baixinho pitador manuseara, cortando fundamente em cruz a barriga do malsinado valentão, que, ali mesmo, tombou, mortinho da silva...

O baixinho João da Cruz não tinha esse nome à toa...

***

Que eu me lembre, desde a minha infância, convivo com valentões. Sequer imaginava que, no completar de mais uma década de vida, com este pequeno grande livro – ”Assim Tombou Ricardo Constâncio”, de João Pereira Neto –, eu viesse a me apegar com mais um. E dos bons.

Explico: Menino curioso que sempre fui, eu ouvia histórias de valentões nas conversas na entrada da noite, quando os vizinhos iam falar seus casos, coisas e “causos” em frente lá de casa, sentados em seus tamboretes, mochos, cadeiras de macarrão, cadeiras preguiçosas... Para iluminar a noite e as conversas, em uma época sem energia elétrica para todos, um ou outro mais abastado trazia seu Petromax, alguns remediados traziam candeeiros e os mais humildes, as lamparinas de morrão. E haja aparecerem histórias e “causos” de valentões, arruaceiros e brutamontes!... A noite de animadas conversas só terminava tarde – antes, só se o tempo recomendasse ou se a rasga-mortalha teimasse chirriar por sobre ali, emitindo prenúncios de mau agouro.

Ilustração: Ricardo Constâncio em xilogravura.

Do convívio com valentões das conversas, passei para os valentes dos livros. Os primeiros acho que os conheci por volta dos seis anos de idade, quando eu, sentado no chão de barro batido da casa, ficava a ouvir Seu Miguel, um paraplégico ledor, morador do mesmo lado de rua, que lia para mim a “História de Carlos Magno e os Doze Pares de França”, que, depois, ele me emprestou e que, adulto, consegui um exemplar semelhante da obra. Até hoje, tenho de memória o nome dos valentes Roldão (ou Rolando) e Oliveiros e, também, Galalão (ou Ganelão), entre outros, e o adversário gigante Ferrabraz, todos com suas espadas com nome: “Joiosa”, espada do Imperador Carlos Magno; “Durindana”, de Roldão; “Alta Clara”, de Oliveiros; “Plotança”, “Batizo” e “Braba”, todas de Ferrabraz. (Além dessas armas do período carolíngio (742-814), como não se lembrar das espadas arturianas, da Távola Redonda? A “Excalibur”, do Rei Artur, a “Cortana”, do cavaleiro Tristão...).

Aos valentões de conversas e aos valentes de livros juntei os da Cultura Popular. Foram estes e outros valentes e valentões que me acompanharam, bem retratados nos muitos “romances” que eu lia e, até hoje, leio e releio. “Romance” era o nome que se dava, à época, aos livretos de literatura de cordel. Nestes, eram frequentes os valentes e valentões, reais e imaginários, que, igualmente, viviam ou eram colocados em relatos verdadeiros ou aventuras fictícias. Entre esses valentes e valentões, além de príncipes em busca de suas princesas, de Juvenal e seu dragão, havia personagens mais chãos, mais telúricos, como Lampião; ou Antônio Cobra Choca e Zé Mendonça (o “Sertanejo Valente”), e Negrão do Paraná e João Balduíno (o “Seringueiro do Norte”), todos do cordelista Francisco Sales de Arêda; os ladinos e legendários Cancão de Fogo e Pedro Malasartes. A valentia de uns e a valentice de outros são sempre bem descritas pelos autores cordelistas. O citado Arêda descreve o valentão Negrão do Paraná:

“Quando chegava nas feiras
fazia o maior destroço
dava nuns matava outros
quebrava pernas e pescoço
o pobre que ele pegasse
quebrava osso por osso”.

Mas como toda chaleira tem sua tampa, havia o humilde e valente Seringueiro do Norte, de nome João Balduíno, na estrofe abaixo identificado como “rapaz”, que não tinha medo de foba e assim falou pro Negrão do Paraná na peleja:

“O rapaz disse está certo
você é duro eu sou duro
pegue arma se defenda
que também estou no apuro
pode furar se puder
que também vou vê se furo”.

Em outro folheto de cordel, e rejeitando a fama de valentices de um lugar, Cobra Choca diz a que veio:

“– Isto de fama é besteira
quem é bravo também morre!
Se o senhor quiser, eu vou
buscá-lo e ele não corre.
Caso ele com a negra
só Jesus Cristo o socorre”.

Cancão de Fogo, por exemplo, se não era um valentão, era um trapaceiro adorável, com laivos de valentia, como na hora da morte, segundo relata João Martins de Athayde, em seu cordel “A Vida de Cancão de Fogo e Seu Testamento”:

“Quando ele viu que morria
Chamou a mulher pra junto
e disse: ‘Minha mulher,
não precisa chorar muito:
não há tempo mais perdido
do que chorar por defunto’”.

O cordelista Severino Milanês descreve bem o seu “Valentão do Mundo”, o herói-título do folheto:

“Era forte e musculoso
tinha força igual a Sansão
domesticava pantera
pegava lobo de mão
matava cobra de murro
botava sela em leão”.

Desde criança, eu também via e ouvia valentes e valentões nas Histórias em quadrinhos (HQs) e na Música. No universo das HQs, lotado de mil e muitos heróis (e seus respectivos vilões...), cite-se apenas um, clássico, que traz a intrepidez no nome: o Príncipe Valente, do desenhista e roteirista canadense Hal Foster (1892-1982), que há mais de oitenta anos, desde 1937, povoa mentes crianças e adultas com suas aventuras.

Por seu lado, as músicas, em especial as brasileiras, me encantavam com os sons que delas saíam e com as letras, pelas imagens que com elas eu construía. Até hoje, recordo da letra e melodia de uma canção que, ainda, não consegui identificar: “Ele é o João Valentão, o bandidão”. Este João aqui tem nada a ver com a música-título “João Valentão”, que Dorival Caymmi passou nove anos pra compor e que, finalmente, gravou em 1953, merecedora de regravações inúmeras nas vozes de Ângela Maria, Elis Regina, Fagner, Ná Ozzetti, Oswaldo Montenegro... Ao descrever seu valentão, Caymmi dedica vinte dos vinte e seis versos para detalhar o ambiente/lugar encantador que é terra de João, personagem apresentado, ao término da música, como um “homem que nunca precisa dormir pra sonhar” – mas os primeiros seis versos revelam logo o “lado A” do moço:

“João Valentão é brigão
Pra dar bofetão
Não presta atenção
E nem pensa na vida
A todos João intimida
Faz coisas que até Deus duvida”

 

(Abaixo, a parte II)

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